A utopia política de Erich Fromm: a pedagogia do amor universal

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A utopia política de Erich Fromm: a pedagogia do amor universal

Will Goya, filósofo clínico

 

Artigo publicado em Fragmentos de Cultura (v.10, n3. p. 573-592. maio/jun. 2000. IFITEG, SGC/UCG, Goiânia – ISSN: 1414-9494).

 

 

 

Resumo: Fromm pensa uma reforma simultânea nas esferas socioeconômicas, políticas e morais, com fundamento na premissa humanista de que a natureza humana é originalmente criadora e naturalmente propensa ao desenvolvimento do amor e da razão. O autor deste, todavia, conclui que sua filosofia política se caracteriza basicamente pela intenção utópica de uma pedagogia terapêutica ideal, capaz de transmutar o coração do homem moderno no caminho da profunda sanidade espiritual.

PALAVRAS-CHAVE: Educação espiritual, Socialismo humanista, Psicanálise Social.

 

Abstract: Erich Fromm proposed a reform in the socio-economic, political and moral spheres, from the humanist point of view. That is the human nature is originally creative and naturally seeks to develop love and reason. This author concludes that his philosophy of politics is utopian seeking to instruct and transform the heart of modern man in search of spiritual health.

Key words: spiritual education, humanist socialism.

 

 

Introdução

Em consonância com os Simpósios Internacionais organizados pela UNESCO na década de 80, em discussões de suprema importância e atualidade, está o pensamento de Erich Fromm (1900-1980). Trata-se de considerações de renomadas personalidades do mundo científico e cultural sobre o crescimento da qualidade de vida no planeta em suas múltiplas manifestações, sobre o alarmante grau de destrutividade humana e desapreço aos direitos fundamentais do homem.

A Declaração de Veneza (UNESCO, 1986) demonstra que na origem do problema pode ser vista uma concepção científica mecanicista, reducionista e atomista, que conduz o homem a considerar a Natureza e o próprio semelhante como instrumentos e recursos de exploração para mais riqueza e mais poder em si mesmo. Afirma também o perigo da ausência de uma inter e transdisciplinaridade do saber, propondo uma integração entre a ciência e a pluralidade de culturas pela busca de uma visão global da realidade:

“…reconhecendo as diferenças fundamentais entre a Ciência e Tradição, verificamos não a sua oposição, mas a sua complementaridade. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciência e as diferentes tradições do mundo permite pensar no aparecimento de nova visão de humanidade, até de novo racionalismo, que poderia levar à uma nova perspectiva metafísica (…).”[1]

Igualmente, a “Declaração de Vancouver Para a Sobrevivência no Século XXI” (UNESCO, 1989) vem exigir mudanças em todos os níveis – científico, cultural, econômico e político – contra quaisquer ações que ameacem o equilíbrio da biodiversidade de espécies ou que reduzam a herança para as gerações futuras. Reforça também a ideia de que “a origem dessa situação tão angustiosa de nossa perplexidade repousa, fundamentalmente, em certos progressos científicos que essencialmente se completaram no início do século”[2]. O conceito de “tradição” usado anteriormente na Declaração de Veneza, é recolocado na Declaração de Vancouver como sendo “tradição espiritual”, intencionando uma maior sensibilização de toda a humanidade; substituindo a visão mecânica e fragmentada por ideias que motivam e valorizam os impulsos criativos, amorosos e espirituais, através de uma consciência ecológica enquanto percepção da totalidade viva.

“A evolução da ciência parece permitir a aceitação de outras formas de conhecimento que dariam ao ser humano a capacidade de recuperar a riqueza das crenças e variedade de experiências espirituais.

“…a superação da fragmentação do ser humano em corpo-mente-espírito, que tem produzido um desenvolvimento desequilibrado de algumas partes em detrimento de outras e do todo, permitirá a ele redescobrir em seu próprio íntimo o reflexo do cosmos e seu princípio unificador supremo.

“…Devemos reconhecer a realidade de um mundo multirreligioso e a necessidade do tipo de tolerância que permitirá a cooperação mútua das religiões, quaisquer que sejam suas diferenças. Isso contribuirá para satisfazer o que se requer para a sobrevivência humana e para se manter o núcleo comum dos valores de solidariedade, direitos e dignidade humanos. Essa é uma herança comum de toda a humanidade e deriva de nossa percepção do significado transcendental da existência humana e de uma nova consciência global.” [3]

A fundamental importância da discussão dos problemas hodiernos, relativos ao equívoco da percepção fragmentada do mundo, faz da crítica à cultura moderna do consumismo, de Erich Fromm, uma reflexão atual e necessária. Nesse sentido, minha leitura procurou assegurar o respeito ao princípio da fidelidade ao autor, através da explicitação dos conceitos básicos da estrutura do discurso de Fromm com elementos obtidos exclusivamente da análise de sua filosofia social integrada num todo articulado; deixando-se a conclusão para minha reflexão pessoal. O movimento do discurso frommiano foi acompanhado a partir do seu interior, buscando identificar possíveis cortes e fraturas e ressaltar sua harmonia e unidade estrutural. Na verdade, apesar de coerente, o discurso de Fromm carece de harmonia visível e deixa, no leitor, a impressão de uma construção rebelde à perfeita ordem das razões. Uma certa dispersão é perceptível e fiz questão de mantê-la presente na estrutura do meu próprio discurso de leitor. Isto me pareceu também um critério de fidelidade. Não obstante, espero haver deixado claro neste artigo um quadro conceitual básico que fundamenta toda a arquitetura da fala política daquele autor.

 

I – A Utopia da Progressão Simultânea

As muitas contradições da vida individual e social podem encontrar soluções seja na ocasião mesma em que se originam, seja num momento futuro da história… sendo anuladas através de uma autêntica práxis, norteada por valores humanistas. Se uma sociedade pretende criar condições para o desenvolvimento da produtividade moral, deve ela fazer de cada pessoa, individualmente, a meta de todas as atividades econômicas e políticas, tornando o homem o único propósito e finalidade, jamais sendo um meio para alguém além de si mesmo. Precisará se organizar de tal forma que as normas necessárias à sua sobrevivência enquanto estrutura social não entrem em choque com as tendências inatas à racionalidade e à espontaneidade de amar- próprias do indivíduo e que lhe definem enquanto humano -, indispensáveis ao mais amplo crescimento de seus membros.

Mas, para que a sociedade como um todo alcance essa utopia possível, será preciso desfazer tais contradições geradas ao longo da história. Na visão do filósofo, sociólogo e psicanalista Erich Fromm, não só a partir da sua experiência clínica como igualmente na evolução social e política das décadas de 60 e 70, em todas as sociedades industriais modernas, independentemente de suas respectivas estruturas políticas (capitalismo ou socialismo), há traços generalizados da “síndrome de deterioração”: a necrofilia, o narcisismo e a simbiose incestuosa[4]. Síndrome este que “é ao mesmo tempo a mais séria patologia e a raiz da mais depravada destrutividade e inumanidade”[5]. Num mundo cuja violência está se tornando o traço marcante da personalidade dos indivíduos, assim como a característica predominante da coletividade… o que fazer?

Talvez seja possível buscar essa esperança na juventude. Em 1976, numa de suas últimas obras, Ter ou Ser?[6], ele constata que o modo de agir da geração jovem, da década de sessenta, discrepou qualitativamente dos padrões de consumo e das velhas ideologias da grande maioria. Essa juventude pareceu ser mais sincera que seus pais, embora quase sempre ingênua filosófica e politicamente. Todavia, ela simplesmente se rebelou, sem procurar encontrar uma meta no sentido de uma direção: não progrediu, assim, da “liberdade de” para uma liberdade positiva. Revelou ainda um interesse quase fóbico pela tradição, acreditando poder descobrir o que lhe importa verdadeiramente para viver bem. Houve autores[7] que ofereceram as ideologias convenientes para o seu ideal de tornar-se criança de novo, ou seja, para um não desenvolvimento até a maturidade, como objetivo final do socialismo e da revolução. Muitos desta juventude perderam a felicidade quando passou a euforia daquele momento, terminando como frustrados, sem vivacidade ou como fanáticos da destruição. Mas nem todos estes jovens fracassaram no seu propósito revolucionário, tendo seus princípios influenciado a consciência de vários indivíduos, tal como a revolução feminista. Eis o que diz Fromm:

“Minha estimativa pessoal é que os jovens e uns poucos velhos que estão seriamente interessados na mudança do modo ter de existência para o modo ser já não são um pequeno número disperso. Acho que um número bastante grande de indivíduos e grupos move-se no sentido de ser, e que isto representa uma nova tendência a superar o modo ter da maioria, o que me parece de significação histórica. Não será a primeira vez na história que uma minoria indica o curso que o desenvolvimento histórico deve assumir. A existência dessa minoria dá esperança da mudança geral de atitude do modo ter ao modo ser. Esta esperança é tanto mais real quanto alguns dos fatores que a possibilitam são irreversíveis no processo histórico, apontando evidentemente no sentido dessas mudanças de atitude: o colapso da hegemonia patriarcal sobre as mulheres e a dominação dos jovens pelos pais.”[8]

Esperança que se fundamenta no potencial amoroso da natureza humana, na premissa de que até hoje, tanto na história individual quanto na da espécie, tem predominado o impulso inato para o progresso e o crescimento. Esperança que se encontra no atrativo estimulante de uma meta utópica, pautada na religiosidade humanista sem religião, que é mais realista e objetiva do que o narcisismo dos líderes atuais, – cheios da tergiversação paranoide da realidade.

Porém, a ausência do idealismo utópico, da coragem de lutar radicalmente por uma sociedade sadia é, para Fromm, uma das causas da destrutividade e do autoritarismo[9]. Ele chama a atenção para a falta de verdadeiros esforços utópicos que descrevam a visão do que deveriam ser o homem bom e a sociedade boa. Esse ânimo que mobiliza as forças morais e espirituais existiu desde o tempo da literatura clássica e medieval até o fim do séc. XIX[10], mas que, no entanto, está bastante enfraquecido no século do industrialismo burocrático e consumista. Importante, todavia, é não confundir, segundo ele, a diferença entre dois tipos de utópicos: os “despertos”, sendo estes intransigentes realistas; e os “sonhadores”, que se mascaram no otimismo e na pseudo sabedoria, uma vez que na verdade estão inconscientemente desesperados.

Para E. Fromm, a sociedade apenas está mentalmente doente. Essa insanidade não é um mal concreto, mas tão só o malogro da saúde coletiva, ou seja, do desenvolvimento de toda uma cultura até a plena maturidade humanista, quando a raça humana se transformará, dentro de um processo histórico, naquilo que ela é potencialmente. Ele acredita que para a sociedade recuperar o seu bem-estar natural, perdido especialmente no século XX, é preciso fazer os homens acreditarem que a causa e a manutenção de sua doença é uma mera falta de fé em sua capacidade de ser feliz. Deduz-se que o pessimismo é a própria doença social e que a cura só virá através da utopia da fé racional, quando o homem eliminar de si a ignorância de suas forças; entendendo-se por ‘curar’ não mais que remover os obstáculos que impedem de agir. Assim, na sua opinião, nossa única esperança reside na fé racional, numa convicção firme baseada na atividade produtiva, intelectual e emocional; diferentemente da fé irracional, ou seja, uma convicção fanática em alguém ou em algo, radicada na sujeição e na autoridade irracional, pessoal ou impessoal[11].

Noutro aspecto, também é importante perceber a antagônica relação entre ideologia e utopia em sua obra. A ideologia burguesa se caracteriza pelo afastamento da “humanidade” em cada indivíduo. Ao mecanizar o trabalho e ao tratar as pessoas como mercadorias, recalcando a percepção da totalidade espiritual, ela cria uma ficção de vida social prazerosa e satisfeita – mas no fundo transforma seres em coisas, objetos, abstrações intelectuais etc. O modo ter, portanto, não é uma experiência objetiva que compreende, de fato, a realidade: é apenas uma ilusão; o afastamento do Homem Universal e do eu verdadeiro; é, enfim, a incapacidade neurótica que o indivíduo tem de se relacionar com o mundo de uma forma racional. De maneira oposta, a utopia implica basicamente no reconhecimento da tendência primária do ser humano, de sua alegria, criatividade, disposição para amar, pensar de maneira adequada etc. Logo, a utopia frommiana não virá substituir uma qualidade de vida real por outra melhor; uma sociedade intrinsecamente má por uma nova realidade social onde a bondade seria espontânea. Ela nada mais é do que o descortinar individual da verdade produtiva sobre si mesmo, latente em cada um de nós; é o transformar-se naquele que se é verdadeiramente, embora ainda na atual condição de potência.

A utopia é a ética no seu humanismo radical, é o caminho da sanidade que levará o homem semiconsciente à consciência plena de si mesmo. Por isso, quando Erich Fromm faz um apelo visionário ao socialismo humanista do futuro, em contraposição à sociedade industrial de consumo, ele pensa no real como algo que não se esgota no imediato e que é reconhecido objetivamente enquanto potência. Ou seja, sua utopia é a possibilidade de ser em ato a realização total das faculdades produtivas que são peculiares à essência do homem e que lhe estão momentaneamente reprimidas. Dessa maneira, deve-se entender que o novo modo de existência, individual ou coletiva, já está presente, embora reprimido …afinal, “nenhum Saulo se transforma em Paulo se já não fosse Paulo antes da conversão”.[12]

“Podemos também vivenciar o futuro como se ele fosse aqui e agora. Isso ocorre quando o estado futuro é tão plenamente antecipado em nossa experiência que só se torna futuro ‘objetivamente…’ Essa é a natureza do verdadeiro pensamento utópico (em contraste com o devaneio utópico); é a base da fé autêntica, que não precisa de concretização externa ‘no futuro’ a fim de tornar sua experiência real.”[13].

Mas, apesar das dificuldades pertinentes ao diagnóstico da enfermidade social, Fromm defende modificações radicais nas diversas e inter-relacionadas causas da insanidade. Como o homem é uma unidade de pensamento, sentimento e prática de vida, ele não pode ser livre na teoria quando está emocionalmente dependente ou quando vive sem liberdade em suas relações econômicas e sociais. Assim, qualquer tentativa de avançar num setor com exclusão de outros, necessariamente conduzirá a um fracasso quase completo. O cristianismo pregou a renovação espiritual mas negligenciou as mudanças na ordem social. O Iluminismo postulou como norma superior o julgamento e a razão independentes; a igualdade política, porém sem uma mudança profunda na organização socioeconômica. Por sua vez o marxismo propôs transformações sociais e econômicas, mas esqueceu-se da necessidade de crescimento interior nos seres humanos. O resultado disso, conclui ele[14], não poderia ser diferente: a pregação do Evangelho conduziu à Igreja Católica; o racionalismo do século XVIII levou a Robespierre e Napoleão; e as doutrinas de Marx conduziram ao estalinismo.

Portanto, uma reforma real da sociedade deve ir além do débil progresso isolado, não permanecendo na superfície a tratar apenas com sintomas. As melhorias simplesmente parciais, são no máximo muito pequenas para a maioria, mas só servem para disfarçar o fato de nada haver mudado em outras esferas. Fromm recomenda algumas medidas nos campos econômico, sociopolítico, e ético-religioso-cultural. Afirma, no entanto, que o importante não é saber se todas as suas sugestões são necessariamente “certas”, mas ter a consciência “de que qualquer progresso restrito a uma esfera é destrutivo para o progresso em todas as esferas”[15].

Fundamentalmente, para ele, o verdadeiro critério da reforma do progresso simultâneo está contido na premissa intocável de sua utopia social humanista: que apesar de a maioria dos fatos contemporâneos indicar que a insânia, o robotismo e a destruição prevalecerão à biofílica escolha do Socialismo Comunitário Humanista, idealizado por ele, nada disso é bastante forte para eliminar a fé na razão, na boa vontade e na sanidade humanas. Mas, na lógica do seu discurso humanista, como Erich Fromm explica que essa fé individual se transformará em realidade? Isto é, como ele apresenta teoricamente sua proposta de reforma social?

A contento, essa pergunta só pode ser respondida considerando aqueles três campos de reforma citados acima que, na concepção de Fromm, se interatuam indissociavelmente pelo imperativo categórico do progresso simultâneo. Imperativo este que se aplica não só às estruturas sociais, como também particularmente aos indivíduos. É bom não esquecer que a sociedade saudável e o homem saudável se condicionam reciprocamente, visto que para Fromm a sociedade não pode se curar se os indivíduos não se curam, e vice-versa. Confiante nisso, ele acredita que se o homem fragmentado e alienado buscar reunir nele seu pensamento, seu sentimento e sua prática de vida, indubitavelmente, a partir de então, um só passo de progresso integrado em todas as esferas da arte de viver terá resultados mais significativos e benignos para o desenvolvimento da raça humana do que cem passos dados numa só esfera. Os caminhos utópicos para o Socialismo Comunitário Humanista foram discorridos em conjunto pela primeira vez em Psicanálise da Sociedade Contemporânea[16] e é principalmente a esta obra que o presente trabalho se reporta.

 

1. As Transformações Econômicas

Para a criação de uma sociedade psiquicamente sadia, é preciso reorganizar o presente sistema econômico do capitalismo na direção de libertar o homem do seu uso instrumental como meio de lucro, e de desenvolver um caráter social produtivo. O objetivo geral do Socialismo Comunitário é, como diz Fromm, propiciar uma estrutura econômica na qual

“Todo trabalhador seria um participante ativo e responsável, na qual o trabalho seria atraente e significativo, na qual o capital não empregaria o trabalho, mas o trabalho empregaria o capital.”[17]

Considerando que para ele a alienação é resultado, sobretudo, da predominância da técnica sobre a satisfação das necessidades universais da natureza humana e da “coisificação” do proletário, pela maneira moderna de organização da produção, essas reformas devem acontecer somente no nível desta organização, isto é, nas relações sociais entre os homens. Seu propósito é substituir o industrialismo burocrático, que tem por objetivo em si mesmo o máximo de produção e consumo em um industrialismo humanista que, por sua vez, busca unicamente fazer crescer a capacidade de amar e raciocinar. Por visar Erich Fromm não o modo de produção, mas a forma de organização industrial, ele procura antes garantir a participação do proletário na gerência e nas decisões que negar o fundamento básico do capitalismo: a propriedade dos meios de produção.

Segundo Fromm, o fracasso e talvez a popularidade do socialismo marxista deriva-se da superestrutura burguesa dos direitos de propriedade[18] e da ideia de controle político do Estado – remanescente dos últimos trezentos anos. Apesar de Marx e Engels considerarem que a emancipação do homem não era primordialmente questão política, mas sim econômica e social, por outro lado eles foram influenciados e “vitimados”[19] pela ideologia da classe média dos séculos XVII e XVIII que norteavam-se pelo princípio da mera revolução política. Dessa forma, E. Fromm procura despojar as concepções sócio filosóficas de Marx do seu conteúdo revolucionário-político, achando que o verdadeiro marxismo histórico nada mais é que uma interpretação antropológica da autorrealização da vida nos indivíduos, plenamente alcançada através do trabalho livre. É com base na ótica desse entendimento que se deve ler em Marx conceitos como “trabalho” e “capital”.

“Antes de mais nada deve ser notado que trabalho e capital não eram, para Marx, meras categorias econômicas; eram categorias antropológicas, impregnadas de um juízo de valor oriundo de sua posição humanista. O capital, aquilo que é acumulado, representa o passado; o trabalho, por outro lado, é, ou devia ser quando livre, a expressão da vida.”[20]

Entretanto, a ideia de conduzir a reforma econômica sem ir contra a iniciativa privada dos capitalistas, não lhes concede o direito ao lucro da “mais-valia” e a uma administração autoritária e centralizada da indústria. Tudo o que receberiam pelo uso de seu capital é um pagamento justo. O fato de um co-gerenciamento levar a uma séria restrição aos direitos de propriedade, de forma alguma poderiam conduzir a uma modificação revolucionária em tais direitos. O programa de reorganização do capitalismo, deve acontecer pacificamente. O método de mudança, seja qual for, deve ser evolutivo e gradual. Um entre outros exemplos que Erich Fromm considera plausível é a sugestão feita por F. Tannenbaum, em seu livro A Philosophy of Labor, de que os sindicatos comprem suficientes ações dos empreendimentos cujos empregados eles representam democraticamente; descentralizando, assim, o controle dos meios de produção.

Embora não seja fácil encontrar tais soluções, elas existem, desde que aceito o princípio da cogerência; de que a finalidade primordial de qualquer trabalho é servir a comunidade, e não produzir lucro. O importante é que os problemas da transformação social, teórica e praticamente, não são mais difíceis de resolver do que os problemas técnicos das Ciências Naturais, já resolvidos por Químicos e físicos. A construção da “sociedade managerial”, ou seja, de participação ativa e responsável dos trabalhadores na gerência da indústria social é, segundo Fromm, perfeitamente viável na esfera econômica. Quando ele assevera que as novas formas para essa participação podem ser encontradas, tenta justificar dizendo que só depende dos homens conscientizarem-se das suas potencialidades boas, fazerem sua escolha por uma sociedade socialista em consonância com os princípios da natureza humana, e então darem o próximo passo rumo à sanidade. Seu ferrenho crítico V. I. Dobrenkóv, contudo, afirma que Erich Fromm só não sabe como, nem porque o capitalista vai gratuitamente deixar que o operário co-gerencie uma empresa que não lhe pertence “…o único que lhe [Fromm] resta fazer é consolar a si e aos outros com a esperança de que ‘podem ser encontradas as formas para essa participação’”[21].

Mas para Fromm, as objeções contra a real possibilidade de que reformas econômicas levem ao Socialismo Comunitário, são em grande parte baseadas no pessimismo e numa profunda carência de fé na humanidade. Essa crença no poder da razão e do amor, segundo ele, mesmo que seja incompatível com o princípio do capitalismo moderno, é uma maneira de “não-conformismo e latitude pessoal”[22]. Conforme sua opinião, o proletário superará o automatismo, o comportamento necrófilo vigente, conhecendo a própria natureza humana e acreditando no poder do amor. Aqueles que sabem que o amor é a única resposta racional ao problema da existência, concluem também que é preciso mudanças radicais na atual estrutura socioeconômica, para que o amor se torne um fenômeno social e não apenas um fenômeno altamente individualista e marginal; mesmo porque não poderia ser diferente, pois o verdadeiro amor não é egoísta. Noutras palavras, em resposta à ideia de que a desonestidade é o melhor negócio frente ao mercado competitivo, Erich Fromm diz que a prática espiritual do amor não impede o trabalhador de sobreviver economicamente:

“em minha opinião, é inteiramente possível em nossa sociedade ser um bom cristão ou um bom judeu, isto é, um ser humano movido pelo amor, sem se morrer de fome. O que importa é o nível de competência e a coragem necessária para aderir à verdade e persistir no amor, em vez de desistir em nome de uma carreira, do sucesso a todo custo.”[23]

 

2. As Transformações Sociopolíticas

O simples princípio do sufrágio universal, no qual o povo decide sobre questões de interesse comum em nada transforma as pessoas em seres responsáveis e independentes. Antes de mais nada, são estas as qualidades, a priori necessárias, que fazem deste método democrático um dispositivo institucional para se chegar a juízos políticos que realizem o bem comum. O voto individual pressupõe uma vontade própria, livre e crítica. Todavia, numa cultura consumista de autômatos manipulados pelas grandes máquinas publicitárias condicionantes, a ideia de que a democracia é estabelecida com a plena irrestringibilidade dos direitos de voto, não passa de uma ficção perigosa e simpática ao povo. “Mas nem o mais completo direito de voto é suficiente”[24].

As atitudes autoritárias não são características apenas de culturas não democráticas[25]. Os sentimentos de culpa, que provém da experiência de a pessoa não agradar os pais – representantes legítimos do caráter social -, mostram-se como o meio mais eficaz de formar a dependência irracional. Essa é inclusive uma das funções sociais e políticas de conservação do poder autoritário através da história. A autoridade, como legislador, faz com que os súditos se sintam culpados por suas inevitáveis e renovadas transgressões ao seu poder. A necessidade de ser por esta constantemente perdoados os mantém sempre cativos. A dependência inconsciente a uma autoridade irracional gera um maior enfraquecimento da vontade do indivíduo dependente; sendo que esse enfraquecimento, por sua vez, aumenta a dependência. Afinal, uma pessoa que renuncia à independência interior, ao difícil esforço do processo de nascimento e libertação e, além de tudo se submete a uma autoridade, tende a substituir suas experiências, valores próprios e autoestima pela sugestão fascista dessa autoridade.

Embora o sistema capitalista não sustente a imagem de um ditador, a maioria dos homens ignora o fato de que também submete-se ao poder de uma burocracia política, das influências anônimas do mercado, da opinião pública – chamada “senso comum”; enfim, dos gigantes impessoais: as grandes empresas e sindicatos, os governos da mesma forma gigantescos… Em razão disso, Fromm objetiva, politicamente, estabelecer uma real democracia, recuperando os princípios e proporções que fazem sentido pessoal e humano em cada indivíduo.

A ideia do domínio pela maioria, em nossa era de conformidade acrítica, faz com que a democracia do voto majoritário, cada dia mais, conduza a um processo de abstratificação e alienação política, em que a decisão da maioria é assumida como

“…necessariamente certa e moralmente superior a uma decisão da minoria, tendo ela, portanto, o direito moral de impor sua vontade sobre a minoria… a decisão da maioria é admitida como argumento em favor de sua correção.”[26]

A evidência desse erro só é percebida, na prática, pelo incomum caráter revolucionário (pelo dissenso crítico), próprio da desobediência civil não-violenta. Está claro, para E. Fromm, que todas as ideias “certas”, isto é, saudáveis, seja na política, na filosofia ou nas tradições religiosas, foram, originalmente, sempre ideias da minoria. Considerando também que para ele todos os problemas sociais modernos são fragmentos de uma só crise de percepção da totalidade Cósmica, a questão política da progressão simultânea não é por onde começar, mas quem e como se poderá libertar o homem alienado, – já que a maioria está corrompida e inconsciente de sua própria dependência e infelicidade. Respondendo à primeira questão, deduz-se que é a partir da minoria biofílica e revolucionária. Isso fica claro nas obras de E. Fromm, como por exemplo em Ter ou Ser?:

“Estou persuadido de que nosso futuro depende da mobilização dos melhores espíritos [‘…sábios, disciplinados e cuidadosos’] e sua dedicação à nova ciência humanista do homem, dada a consciência da crise atual. Porque nada, a não ser seu esforço conjunto, contribuirá para solucionar os problemas…”[27].

A premissa do radicalismo utópico de Fromm, de que as transformações sociais deverão acontecer inicialmente através de personalidades da própria sociedade, é corroborada por um de seus críticos, M. Ferguson, em seu trabalho jornalístico A Conspiração Aquariana[28]. Outro deles, John H. Schaar, afirma que tais líderes humanistas são deduzidos, pela lógica interna do discurso frommiano, como vindo de fora do meio social. Entretanto, esta conclusão de John nunca seria aceita por E. Fromm como se pode constatar lendo o seu livro A Revolução da Esperança. Nas palavras de Schaar:

“Se compreendo Fromm corretamente, a força inicial só pode vir de uma fonte fora do sistema social: o profeta, o herói, o líder. Nas condições como as que vivemos, segundo ele, está o terreno onde medram os líderes carismáticos e os movimentos de massa: os fracos, os mutilados, os entediados, buscam guias e movimentos. (‘…um dos temas predominantes e melhor desenvolvidos em O Medo à Liberdade’). Portanto, não há dúvida de que a força motora da grande transformação social poderia vir de um desses líderes, à frente de um desses movimentos”.[29]

De qualquer maneira, embora seja com a fundamental ajuda da “minoria certa” que os indivíduos se conscientizarão de sua natureza primariamente amorosa, e com eles a sociedade, resta ainda saber: como seria possível a implementação de uma cultura verdadeiramente democrática? Primeiramente, é fácil perceber que para E. Fromm a moderna democracia representativa, cada dia mais administrada “centralmente desde o topo da pirâmide até as bases por um aparelho burocrático”[30], é em absoluto, incompatível com o Socialismo Humanista. Sua intenção, de fato, é reduzir ao máximo a representatividade política e propiciar uma democracia direta, estado em que as decisões coletivas são feitas mediante uma relação pessoal em grupos relativamente pequenos, de talvez umas quinhentas pessoas[31], de maneira a favorecer a cada membro a oportunidade necessária de expressar e discutir racionalmente cada argumento. Além disso, o que se decidir nessas comunidades deve ter influência direta sobre o poder de decisão exercido pelo Governo central.

Essa comunidade, com um alto grau de descentralização, à maneira de grupos celulares que se dividiriam numa interação dinâmica, deverá reunir-se regularmente para refletir o andamento das principais questões políticas tanto locais quanto internacionais. Para isso necessitaria de uma agência cultural[32] – gerenciada sob o mesmo princípio – que publicaria e distribuiria informações concretas sobre os fatos mais pertinentes à discussão. É extremamente importante que esta agência seja livre da influência partidária de governos flutuantes; e que seja composta por “personalidades dos campos das artes, ciências, religião, negócios e política, cujas realizações e integridade moral estejam fora de dúvida”[33].

As decisões gerais dos grupos de contato pessoal seriam computadas e registradas, constituindo “a verdadeira ‘Câmara dos Comuns’, que partilharia o poder com a câmara dos representantes universalmente eleitos e com um executivo universalmente eleito”[34]. Dessa maneira, Fromm acredita eliminar o processo de alienação do homem, que se observa na atmosfera da votação em massa, “trazendo de volta a si o papel de participante da vida da comunidade”[35].

Sobretudo, o sucesso desse fraterno empreendimento dependeria da imprescindibilidade de se acabar com o emprego de todos os artifícios semi-hipnóticos, métodos de lavagem cerebral, usados pela propaganda publicitária, que não apenas induzem a comprar coisas supérfluas, mas também impelem os homens a escolher representantes políticos que de fato não necessitam, e nem quereriam se estivessem em pleno exercício de sua consciência.

 

3. As Transformações Ético-cultural-religiosas

Uma das questões aparentemente mais difíceis de serem resolvidas pelas reformas utópicas de Erich Fromm, reside na sua proposta de radicais mudanças sociais sem jamais apelar para a violência ou sequer, para uma pedagogia por meio de persuasão e coação[36]. Alguns de seus críticos, como John H. Schaar e V. I. Dobrenkóv[37] entendem isso como uma incapacidade do autor de simplesmente ir além da boa intenção; fato que, segundo estes, revelaria sua deficiência como pensador político.

O problema é o seguinte: põe-se em movimento um círculo vicioso, qual seja, quando as condições socioeconômicas inibem o princípio da produtividade humana, então a destrutividade aumenta a necrofilia de tais condições e estas, por sua vez, fortalecem mais a destrutividade atuante. Dessa forma, parece que a ética humanista vê-se confrontada com a dificuldade de saber como o lado destrutivo do homem poderá ser contido sem proibições e sem ordens autoritárias.

Todavia, esta dificuldade teórica e prática não existe para Fromm, visto que para ele ninguém precisa se obrigar a se abster do mal e fazer o bem[38]. Segundo Fromm, mais vale cuidar das virtudes, conscientizando-se delas, do que repreender os vícios; o que em relação psicoterápico-humanista equivale a dizer que não se pode curar o doente mental reprimindo-lhe a doença, mas tão só fortalecendo-lhe a potência interna de saúde. Na medida em que virtude é o mesmo que produtividade, sua prática, embora não seja simples, não é em nada uma tarefa amarga. A utopia social considerada assim, no fundo, não deixa de ser uma reforma agradavelmente estimulante. Conclui Fromm:

“Assim como quem se tornou estéril e destrutivo fica cada vez mais paralisado e cativo como que num círculo vicioso, aquele que tiver noção de seus próprios poderes e usá-los produtivamente irá ganhando vigor, fé e felicidade, e estará cada vez menos em perigo de alienar-se de si mesmo; êle criou, podemos dizer, um ‘círculo virtuoso’. A experiência de alegria e felicidade não é só, como vimos, o resultado da vida produtiva, mas também o seu estímulo. A repressão da maldade pode emanar de um espírito de autopunição e tristeza, porém não há nada mais propício à bondade, na acepção humanista, do que a experiência de alegria e felicidade que acompanha qualquer atividade produtiva. Todo aumento de alegria que uma cultura pode proporcionar fará mais pela educação ética de seus membros do que poderiam fazê-lo todas as advertências de punição ou pregações de virtude”.[39]

Sob esse aspecto, a pedagogia humanista é, sem dúvida, o ponto básico da transformação utópica da ordem social. Todavia, na opinião de Fromm, não se deve jamais subentender “que o ensino por si só possa ser o passo decisivo para a realização do humanismo…”, sendo igualmente verdade para o autor que o ensino só terá “impacto se mudarem as condições sociais, econômicas e políticas essenciais”[40]. Não se trata, contudo, de forçar as pessoas a crer em ideias de amor, razão e justiça só porque lhes foi ensinado a pensar assim: as ideias de liberdade e democracia degenerariam em fé irracional, porque não seriam baseadas na experiência produtiva pessoal. Para ele, impreterivelmente, está fora de questão obrigar as pessoas a fazer o que é saudável, o que é certo ou o que é melhor “- mesmo que seja realmente o melhor”[41].

Porém, não se pode concluir que toda autoridade é inibidora ou irracional. O conceito de autoridade refere-se a uma relação interpessoal em que uma pessoa considera outra superior a si e, nesse sentido, Fromm entende que todo aquele que é capaz de levar o outro à produtividade de si mesmo, ativando-lhe o pensamento crítico e a fé na vida, é uma autoridade racional[42] – cujo valor pedagógico é indiscutivelmente superior ao autoritarismo. Para ele a relação da autoridade racional tende a dissolver-se na pedagogia humanista, uma vez que quanto mais o aluno aprende, tanto menor será a diferença entre este e o mestre. “Só em relações ideais entre professor e aluno encontramos a ausência total de antagonismo de interesses.”[43]

Segundo Fromm, educar, e-ducere, que literalmente quer dizer “trazer para fora”, é o mesmo que auxiliar alguém a realizar suas potencialidades produtivas intrínsecas. Educação, entendida assim, resulta em existência, na emersão do estado potencial e inconsciente para o de realidade manifesta. Essa pedagogia terapêutica visa à Consciência Cósmica, e portanto deve eliminar a separação entre o conhecimento teórico e o conhecimento afetivo-experimental na arte de viver[44]. “Nenhuma sociedade socialista poderia realizar o ideal de fraternidade, justiça e individualismo a não ser que suas ideias sejam capazes de encher o coração do homem com um novo espírito”[45]. Com relação ao conteúdo dessa nova pedagogia humanista, Fromm acrescenta não ser necessário novos ideais ou normas para uma vida sadia, pois que os grandes Mestres espirituais da raça humana já os postularam. Para ele “a revolução dos nossos corações não exige nova sapiência – mas seriedade e dedicação”[46].

Porque esse processo pedagógico e terapêutico não é diretivo, no sentido de acreditar que o aprendiz deve encontrar o verdadeiro significado da “arte de viver”, tão só por si mesmo, não se pode esperar – indefinidamente – que sua vontade de desenvolver-se aconteça por acaso; afinal, ele próprio tem muitas resistências inconscientes frente à sua independência psicológica. Para Fromm, isso talvez leve anos e não se pode esperar tanto. Por conseguinte, em Diálogo com Erich Fromm, ele afirma que, mediante a sua Psicanálise Humanista, com base na premissa de que nada do que é humano me é estranho, é possível sentir o outro dentro de si – antes mesmo da compreensão pelo intelecto. Essa união intuitiva com o semelhante é, sobretudo, o objetivo de transformação humana e espiritual da relação terapêutica entre o analista e o paciente[47]. Logo, uma vez que o paciente percebe que a análise abre-se à totalidade da experiência humana, tanto boa quanto má, não há mais perigo de ele sentir-se constrangido ou surpreso ante coisa alguma. Fromm chama esse processo terapêutico de “ativação”:

“…tenho de sentir dentro de mim aquilo de que o paciente está falando antes de poder ter qualquer compreensão real do paciente como pessoa humana… É o que se poderia talvez chamar de premissa humanista: nada do que é humano me é estranho. Tudo está dentro de mim: sou uma criancinha, um adulto, um assassino e um santo; sou narcisista e destrutivo… E só na medida em que eu possa mobilizar em mim aquelas experiências das quais o paciente me fala, seja explícita seja implicitamente, poderei saber de que o paciente está falando e devolver-lhe aquilo que na realidade êle está dizendo. Então, algo muito estranho acontece: o paciente não tem a impressão de eu estar falando acerca de alguma coisa alheia a êle – êle não acha que estou falando a respeito dêle nem tampouco impedindo-o de falar – em vez disso, sente que estou falando de alguma coisa que compartilhamos.”[48]

Para Dobrenkóv, essa missão revolucionária que Fromm pretende alcançar, é exclusivamente tarefa daquela “minoria certa”, que segundo ele são os Psicanalistas Humanistas[49]:

“a única força ‘histórica’ possível, capaz de transformar a ‘sociedade capitalista doente são, segundo Fromm, os psicanalistas com a sua civilizadora técnica terapêutica de reeducação moral do indivíduo alienado. É justamente aos psicanalistas, representantes da escola da ‘psicanálise humanista’, que se reserva o papel principal, decisivo na transição do capitalismo ao socialismo. Fromm, segundo palavras de H. Wells, ‘transforma uma teoria utópica em terapia utópica’.”[50]

Contudo, Erich Fromm reconhece que o método psicanalítico não é a única solução para a enfermidade mental da sociedade capitalista moderna[51]. Os ensinamentos das grandes religiões monoteístas relevam, segundo ele, os mesmos objetivos em que se baseiam a “orientação produtiva”. Segundo a tradição judaica, por exemplo, a fé em Deus implica num interesse pela História, isto é, num interesse político; observado com mais distinção nos profetas – segundo os quais, “os critérios para o julgamento dos fatos históricos são espirituais e religiosos: justiça e amor”[52]. Os profetas, dessa maneira, percebem a realidade moral subjacente à realidade social e política; com todas as suas consequências. O ponto central da visão messiânica profética – compartilhada por Fromm[53] – é a transformação universal histórica do homem idólatra e alienado em busca de sua religiosidade perdida. E é particularmente neste ponto que melhor se define o elemento religioso do agente revolucionário da sua utopia social. Em O Espírito da Liberdade, isso fica muito claro nas palavras do autor: “a ação política é ação religiosa. O líder espiritual é um líder político”[54].

 

II. Conclusão

Observa-se que as propostas de reforma nas esferas “econômica” e “sociopolítica”, aqui estudadas sob o prisma da utopia da progressão simultânea de Erich Fromm, subentendem o seguinte pressuposto: “uma vez aceito esse (ou aquele) princípio humanista…  então será possível o surgimento de uma sociedade verdadeiramente saudável, porque o homem reconhecerá nele próprio o impulso natural para o desenvolvimento da vida, da alegria e da fraternidade entre seus semelhantes”. Embora as três propostas sejam teoricamente indissociáveis para ele, certamente que, antes, é a partir da pedagogia terapêutico-humanista que as demais poderão se consolidar. No fundo, sua utopia política não sustenta uma efetiva progressão simultânea, visto que, na viabilidade hipotética ou prática, tudo depende do sucesso do labor pedagógico e terapêutico, ou seja, das transformações “ético-cultural-religiosas”. Não se quer concluir com isso uma exclusão de reformas na organização industrial e política, mas apenas evidenciar qual é – distintamente – o primeiro passo dado pela “minoria certa” a fim de que então seja possível um empreendimento simultâneo de reformas radicais nas demais esferas.

Ora, mediante que método terapêutico as chamadas personalidades do modo ter – céticos, pessimistas, necrófilos etc. – aceitarão tais princípios humanistas? Afinal, como tais pessoas adquirirão fé racional na solução dos seus problemas, já que várias delas sequer têm consciência de que sofrem, e tampouco sabem que estão fragmentadas “em sua totalidade físico-espiritual”[55]? Bem, considerando que para Fromm “o êxito do esforço terapêutico depende da compreensão e resolução do problema moral do indivíduo”[56], o método a ser aplicado no âmbito da coletividade, pela “minoria certa”, capaz de fazer brotar o amor e a razão latentes no homem, é a Educação moral-espiritual, norteada pela técnica/arte da “ativação”, da Psicanálise Humanista. Segundo ele as condições de cura para as coletividades seguem o modelo de tratamento individual, apesar de ainda querer preservar uma análise objetiva das leis das estruturas políticas, culturais e socioeconômicas. A psicoterapia individual, certamente, é um caminho eficaz, mas não atinge todas as classes sociais, e em se tratando da visão socialista de Fromm, ele malogrou em sua iniciativa de ser antes um terapeuta da sociedade.

A filosofia política de Erich Fromm, portanto, pode ser caracterizada como sendo uma irrealizável utopia social da progressão simultânea, tal como ele a entende. Não obstante, conforme minha análise de seus argumentos, sua educação terapêutico-humanista para a Consciência Cósmica pode ser perfeitamente eficaz até os limites de pequenos grupos, numa relativa liberdade política feita da união de individualidades revolucionárias no bem geral.

 

 

 

 

 

 

[1] Cf. Apostila do Plano de Formação Holística de Base – Grupo Piloto, 1989 – Universidade Holística Internacional, BR; p.85.

[2] Cf. I CHI – Intercâmbio dos Círculos Holísticos. Boletim Informativo da Associação Holística Internacional, Holos-Brasil. Belo Horizonte: Comissão Organizadora Do II Congresso Holístico Internacional, n.º 8 – ano 5, abril/91.

[3] Cf. Idem, Ibidem.

[4]“Fromm é um autor que emociona o leitor… É preciso ir a ele e verificar como são convincentes essas opiniões [acerca da simbiose incestuosa], como constituem tão bem o que é essencial em Freud e o aplicam aos problemas hodiernos de escravidão, maldade e permanente loucura da política. Isso, a meu ver, é a linha autêntica de pensamento crítico cumulativo sobre a condição humana. O espantoso é que essa linha central de trabalho sobre o problema da liberdade desde o Iluminismo ocupa muito pouco da preocupação e da atividade dos cientistas”. In: Ernest BECKER, A Negação da Morte, p.137 (parêntese e destaque meus).

[5]Cf. Erich FROMM, O Coração do Homem – seu gênio para o bem e para o mal. tradução de Octávio Alves Velho. 6ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1981, p. 39.

[6]Cf. Idem, Ter ou Ser? tradução de Nathanael C. Caixeiro. 4ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1987; p.85-7.

[7]A exemplo, Fromm cita Marcuse in: Idem, Ibidem, p.86.

[8]Cf.: Idem, Ibidem; p.87.

Para outros aspectos positivos e negativos sobre a juventude, ver: Afluência e Tédio em Nossa Sociedade. In: Idem, Do Amor à Vida. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: JORGE ZAHAR, 1986; p.42-3.

[9]“A ausência de visões que projetam um homem ‘melhor’, e uma sociedade ‘melhor’ teve como efeito uma paralisação, no homem, de sua fé em si mesmo e em seu futuro (e é, ao mesmo tempo, um resultado dessa paralisia).” In: Erich FROMM, Análise do Homem. Tradução de Octávio Alves Velho. 7ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1970; p. 77.

[10]Numa crítica direta a Erich Fromm, diz V. I. Dobrenkóv: “Se nas condições do século XVIII e começo do XIX várias idéias do socialismo utópico tinham certa importância progressista, atualmente, nas condições de uma aguda luta de classes, quando existe uma teoria marxista do socialismo científico já verificada pela vida, semelhantes idéias não são apenas anticientíficas, são também reacionárias”. In: V. I. DOBRENKÓV, O Neofreudismo à Procura da Verdade – ilusões e equívocos de Erich Fromm – tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 1978, p.135-6.

[11]In: Erich FROMM, Análise do Homem. op. cit., p.175.

[12]Cf. Idem, Ter ou Ser?, op. cit., p. 193.

[13] Idem, Ibidem; p.131.

[14]Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Tradução de E. A. Bahia e Giasone Rebuá. 10ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983; p. 261-2.

[15]Cf. Idem, Ibidem p. 12.

[16]Cf. p. 266-337 do referido livro.

[17]Cf.. Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea; op. cit., p. 272.

[18]O direito de propriedade, para o autor, é uma questão a ser resolvida no discurso psicológico e moral, e não no econômico: “Se as posses de todos são funcionais e pessoais, então o que alguém tem a mais que outra pessoa não constitui um problema social, porque se a posse não é essencial, não enseja cobiça. Quem exige que ninguém tenha mais que ele próprio está desse modo se protegendo da inveja que sentiria se outro tivesse mesmo um mínimo a mais. O que importa é que o luxo e a miséria sejam erradicados…” In: Idem, Ter ou Ser?, op. cit., p. 94.

[19]“Esse paradoxo no pensamento de Marx foi claramente expressado por Buber (Paths in Utopia, The Macmillan Company, N.Y., 1950, p. 95-6):  ‘…Das três formas de pensar sobre questões públicas – econômica, social e política – Marx escreveu a primeira com metódica mestria, devotou-se apaixonadamente à terceira, mas – por mais absurdo que possa soar aos ouvidos do marxista elementar – apenas muito raramente entrou em contato mais íntimo com a segunda, e ela jamais se tornou, nele, um fator decisivo.’”. In: Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p.251 (ver também p. 271-2).

[20]Cf. Idem, Conceito Marxista do Homem. Tradução de Octávio Alves Velho. 8ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983, p. 46.

“Tomando Marx e seus manuscritos econômico-filosóficos por base de sua interpretação antropológico-existencialista, Fromm tenta opor as teses filosóficas neles expostas às conclusões da teoria econômica e política do Marx maduro, considerando-as errôneas.” Cf. V.I. DOBRENKÓV, op. cit., p. 137.

[21]Cf V. I. DOBRENKÓV, op. cit., p.131-2.

[22]Cf. Erich FROMM, A Arte de Amar. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, ltda, sem data., p.169.

[23]Cf. Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade; op. cit., p. 36.

[24]Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 327.

[25]Ver o papel do autoritarismo anônimo que age na família e na sociedade contemporânea, in: Idem, O Medo à Liberdade. Tradução de Octávio Alves Velho. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983; cap. V.

[26]Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 326.

[27]Cf. p.172 do referido livro.

[28]Cf. FERGUSON, Marilyn, A Conspiração Aquariana; tradução de Carlos Evarsto M. Costa. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1994; p. 55 e 112.

Ver também in: V. I. DOBRENKÓV, op. cit., p.126.

[29]Cf. SCHAAR, John H. O Mundo de Erich Fromm; tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1965; p.227.

[30]Cf. Erich FROMM, Ter ou Ser?, op. cit., p.179.

[31]Está claro que para Fromm o Estado democrático pertence ao gênero “comunidade”: “a questão está em determinar se as condições similares às criadas pelos comunitários podem ser criadas para a sociedade como um todo.” In: Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 309. Esta concepção frommiana de Estado é estreitamente próxima ao princípio da Àgora grega, da política de Aristóteles, “que considerava inabitável uma cidade que superasse em número de habitantes, o que hoje nos parece um pequeno povoado.” In: Idem, Ibidem, p.171.

[32]21 anos após a publicação de Psicanálise da Sociedade Contemporânea E. Fromm chama esta “agência” de “Supremo Conselho Cultural”. In: Idem; Ter ou Ser?, op. cit., p. 187-8.

[33]Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 328.

[34]Cf. Idem, Ibidem, p. 328.

  1. Fromm não detalha esse processo, ficando a questão no âmbito bastante genérico. Entretanto, ele remete o problema a outros autores, como, p. exp.: Robert. A. NISBET, The Quest for Community, Oxford University Press, N. Y., 1953.

[35]Cf. Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 329.

[36]É interessante conhecer o Prefácio de Erich Fromm à obra do famoso diretor da escola inglesa Summerhill, o Sr. A. S. Neill, chamada Liberdade sem medo. Diz Fromm: “Em minha opinião, êste livro é de grande importância, porque representa o verdadeiro princípio da educação despojada de mêdo … relata experiência de quase 40 anos. O autor sustenta que a liberdade funciona’.” In: NEILL, Alexander Sutherland. Liberdade Sem Medo; tradução de Nair Lacerda. 23ª Ed. São Paulo: IBRASA, 1984.

[37]A exemplo de John. H. SCHAAR, op. cit., p.227-8; e também de V. I. DOBRENKÓV, op. cit., p.135.

A crítica hipossuficiente de Schaar, segundo o qual o problema básico da utopia de Fromm não é a presença da autoridade irracional, “mas a ausência de toda autoridade propriamente dita”, é perfeitamente rechaçada por Martin JAY, que aponta o conceito “de la autoridad de la razón”, utilizado por Fromm, como sendo “un tipo de autoridad política que podía ser llamado legítimo”. Cf. JAY, Martin. La imaginación dialéctica; tradução espanhola de Juan Carlos Curutchet, Madrid: TAURUS, 1974; p. 203.

[38]“A consciência da pessoa biofílica não é o superego descrito por Freud, que é um feitor severo, empregando sadismo contra si mesmo em nome da virtude”. In: Erich FROMM, O Coração do Homem; op. cit., p. 51.

[39]Cf. Idem, Análise do Homem. op. cit., p.195.

[40]Cf. Idem, O Coração do Homem; op. cit., p.104.

[41]Cf. Idem, Ter ou Ser?, p.173.

[42]Cf. Idem, Ibidem, p.90.

“A obediência à autoridade racional é o caminho que facilita o rompimento da fixação incestuosa com as forças arcaicas pré-individuais”. In: Idem, O Espírito de Liberdade. Tradução de Waltensir Dutra. 4ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1988; p.63.

[43]Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p.103. (O destaque é meu).

[44]“Essa separação é uma parte da alienação do trabalho e do pensamento…  tornando mais difícil do que fácil para o indivíduo participar significativamente do trabalho que esteja realizando.” In: Idem, Ibidem, p.330.

[45]Cf. Idem, Ibidem; op. cit., p.329.

[46]Cf. Idem, Ibidem; op. cit., p.330.

[47]Cf. Das Limitações e Perigos da Psicologia; p.151. In:  Idem, Dogma de Cristo – e outros ensaios sobre religião, psicologia e cultura. Tradução de Waltensir Dutra. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

[48]Cf. EVANS, Richard I. Diálogo com Erich Fromm; tradução de Octávio Alves Velho. Rido de Janeiro: ZAHAR, 1967; p. 51 (citação de Erich Fromm).

A respeito, ver também O Indivíduo, p. 37-8. In: Erich FROMM, et alii. Entrevista ao Le Monde – o Indivíduo. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: ÁTICA, 1989.

[49]Para Erich Fromm, estes Psicanalistas necessariamente possuem um “caráter revolucionário”. Ver in: O Caráter Revolucionário, in: Dogma de Cristo; op. cit., p. 128.

[50]Cf. V.I. DOBRENKÓV, op. cit., p.126.

[51]Cf. EVANS, Richard I.; op. cit., p.50.

Ver também in: Erich FROMM, et alii,. Zen-Budismo e Psicanálise. Tradução de Octávio Alves Velho. São Paulo: CULTRIX, sem data (original de 1960); p.160-2.

[52]Cf. Erich FROMM, O Espírito de Liberdade; op. cit., p. 47.

[53]Pelo fato de Fromm ser ateu, ele se encontra fora do sistema de conceitos que constitui a religião judaica.  Para ele o passo seguinte na evolução judaica deveria ser um sistema sem Deus. Entretanto, ele se encontra muito próximo do que chama de o espírito humanista da tradição judaica: e é dessa maneira que ele interpreta e aceita como válidas as leis morais da Bíblia. In: Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. op. cit., p. 47 e 143.

[54]Cf. Erich FROMM, O Espírito de Liberdade; op. cit., p. 98.

[55]Cf. Idem, Análise do Homem. op. cit., p. 16.

[56]Cf. Idem, Ibidem, p.10.