A Imprensa e a Filosofia Clínica

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A Imprensa e a Filosofia Clínica

Will Goya, filósofo clínico

 

Artigo publicado no Jornal da AGI/Associação Goiana de Imprensa. Goiânia, outubro, ano VI n 39, 2004.

 

 

O “papel” físico do jornal se caracteriza pela natureza das fibras nele empregadas. Pode ter várias fontes, substratos e corantes diferentes. Serve tanto para escrever quanto para embrulhar frutas em uma feira de alimentos frescos. Em qualquer forma ou função, num sentido ou noutro, o que o faz tão popular é uma mistura ideal de realidades: é barato, prático e flexível; nem sempre durável. Seja como for, o mesmo material que se faz útil e óbvio à praticidade do pacote serve de matéria desarticuladora do pensamento, desencaixando valores, estéticas ou políticas do real. Um simples jornal, comprado em uma banca de revistas, feito em duas substâncias: da que se toca flexivelmente, e daquela outra, que pode nos tocar reflexivamente. É sobre isso que gostaria de falar.

Falar ou escrever não é coisa fácil, porque para fazer sentido tudo deve ter significado ou seria apenas desenho disforme ou não mais que um ruído qualquer do meio ambiente. Filosoficamente, por exemplo, a palavra cachorro se reporta, enquanto representação mental, à memória ou à experiência direta e sensorial que temos desse bicho. Muito bem, mas o que representaria mentalmente uma frase como esta: “a greve dos bancários foi considerada ilegítima pelo Judiciário”? Que tal esta outra: “o amor lava uma multidão de pecados”. Uma rosa é uma rosa, apesar das muitas provocações dadas pela poesia de Gertrude Stein, porém isso não parece problemático a quase ninguém. Mas o que significa a palavra “amor” ou “justiça”, a fim de que possamos nos entender a respeito? Resposta: não só cada pessoa de uma cidade tem uma ideia sobre, como também há padrões variáveis entre classes econômicas, sexuais, de idade, de época, inteligência, cultura etc. Sobretudo, há mais do que pensamento envolvido, há interpretações emotivas, impulsivas, carregadas de pré-conceitos, meras distrações, valores, instintos etc. etc. Nada fácil a tarefa da imprensa de se comunicar com o povo!

Uma escrita pressupõe um leitor, um jornal um público “alvo”, um programa televisivo da mesma forma. Quem se interessa pelo caderno Mais, da Folha de São Paulo, distingue-se, em tese, do típico leitor dos assuntos policiais. Nunca haverá certezas nem garantias quanto ao entendimento comum. Na verdade, o que se observa é muita surpresa. Algumas análises mostraram que a cantora Kelly Key ao invés de chamar atenção dos adolescentes, como estava pressuposto, causou mais interesse às crianças. Em princípio, Sílvio Santos não creu no sucesso do programa do Ratinho. Para complicar, o poder da imprensa não é neutro, e por isso modela as informações pela força ideológica que ela assume, explícita ou indiretamente. O tempo e o espaço disponíveis nunca são suficientes, exigindo do jornalista muitos cortes de palavras e, quase sempre, de ideias. Sobretudo, ante a concorrência, é lugar comum a receita de que não há notícia sem má notícia. Qual o valor do jornalismo, com tudo isso? Ao contrário do primeiro abalo, penso que na presença de tamanhos desacertos é possível, diferente de muitos, errar tão pouco, pois existem louváveis exemplos de jornalismo ético, socialmente comprometido e eficiente.

Como se pode concluir, na inteligência humana nada é óbvio. Estranha conclusão dizer que o óbvio não é óbvio e que não bastam palavras comuns para nos comunicarmos. Aliás, de indivíduos para indivíduos e muitas vezes de si para consigo, é preciso criar pontes de linguagem e entendimento. Neste caso, como em tudo, reza a lógica: quanto maior a extensão, menor a profundidade. Conquanto o jornalismo mostra, a filosofia ensina a ver, pelo caminho da revisão. Da imprensa ao grande público, eis uma importante notícia: a filosofia saiu dos limites restritos – embora necessários – das universidades e literaturas acadêmicas para o alcance e o serviço de ajudar as pessoas, mesmo as não-intelectuais, a resolverem ou cuidarem de seus dramas, marcados de sofrimento e muitas vezes das angústias de um problema sem solução. Disso é feito a existência. Com responsabilidade profissional, seja em consultórios, escolas, hospitais etc., o filósofo clínico vem cuidar do humano, com método rigoroso, valendo-se de toda a história da filosofia para dedicar-se ao sujeito, à pessoa, ao indivíduo que jamais, nem aproximadamente, será como outro igual. O que se pode saber de cada partilhante – nome que recebe aquele que faz a terapia – sabe o filósofo clínico tão somente a partir de sua história pessoal e das circunstâncias que o afetam.

A Filosofia Clínica lida com questões metapsicológicas, isto é, questões que perpassam pela conceituação, definição de angústia, felicidade, sentido da vida, sobre a perda de um filho, a respeito do amor, dos sentimentos, das sensações físicas, das experiências religiosas ou sexuais, entre outras que nunca, repito, nunca poderiam ser respondidas antes da verdade que cada um é e merece ser considerado como um ser singular, cuja resposta – se for possível tê-la – é também única. Logo, não há doutrinas ou caminhos pré-programados, elaborados nalguma teoria filosófica ou nalguma corrente psicológica qualquer. A Filosofia Clínica, conforme afirma seu sistematizador o filósofo Lúcio Packter, “apresenta sentido somente quando relacionada à pessoa dentro de um exercício de psicoterapia”. E nesse preciso sentido, a filosofia hoje aponta caminhos à sociedade capazes de reconstruir ligações, da teoria ao mundo da vida, do ser humano, de comunicar novas possibilidades de linguagem e entendimento, num tempo em que todos julgam ter razão, mas dificilmente as pessoas se entendem, umas às outras ou à si mesmas. Os chamados meios de comunicação de massa têm esse importante valor: prestar serviço à coletividade, ao bem comum, não como massa, uma soma abstrata de estatísticas, mas como seres que se constroem e se refazem individualmente em interseção como o mundo que o circunda. Nesse aspecto, acredito, a Filosofia Clínica tem muito a ensinar aos meios de comunicação o entendimento das singularidades, para além dos modelos sociológicos do seu público interessado. Há muito se tenta, em particular na televisão, uma relação terapêutica com o outro, buscando cativá-lo. A filosofia é o caminho, não a “autoajuda”. Não basta ouvir ou falar sobre, é preciso saber ouvir.

Assim como o jornal tem o seu papel, na esfera pública, a Filosofia Clínica seu propósito na alma humana, que a história agora registra na imprensa. Que um sirva ao outro seu objetivo maior, para além de tantas diferenças: serem cada qual melhor do que eram antes de iniciarem seu trabalho, o que justificam estas palavras. No que há por se inventar, é preciso unir jornalismo e filosofia, a fotografia a um novo olhar. O cotidiano sem sabedoria seria apenas rotina e repetição. Acredito que a nascente Filosofia Clínica será de fundo proveito ao jornalismo, descortinando a estrutura de pensamento de cada ser. Afinal, não se pode querer convencer o leitor que ele não pensa individualmente e que o jornal tem sempre razão. Um bom jornal não é, portanto, o que tem mais palavras, mas o que faz mais sentido; aquele que permanece com o leitor quando este já deixou de ler. Essa é a verdadeira filosofia do jornalismo. Montaigne, que não lia jornais nem assistia TV já dizia: “vejo homens normalmente mais ansiosos para descobrir uma razão para as coisas do que descobrir se as coisas são assim”. Como sempre, a filosofia é atual.