A morte do humanismo, graças a Deus!

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A morte do humanismo, graças a Deus!

 

Por Will Goya, filósofo clínico

Artigo publicado no Jornal Diário da Manhã. Encarte “Semana do Meio Ambiente”. Goiânia/GO, p.14, 2001.

 

Um questionamento: por que, hoje em dia, aquele que sabe já não mais parece ser sábio? Curiosamente percebe-se que a ciência moderna quase nunca significa aquele clássico conceito de sabedoria em que o saber busca um sentido de plenitude de consciência, uma visão da totalidade do mundo. Fato é que o saber deixou de significar sabedoria quando o conhecimento adquiriu outro fim que não sua própria totalidade. Essa mudança surgiu quando o ser humano – a partir de Francis Bacon e assegurado pelo paradigma científico de Descartes e Newton – fragmentou a realidade em duas partes separadas: o homem e a realidade natural; o observador e a objetividade do mundo externo a ser conhecido. Depois da afirmação pragmática de Bacon, segundo a qual “conhecer é poder”, aquele que sabe não é mais sábio. O verbo latino sapere significa literalmente “saborear”, ou seja, experimentar pessoalmente, vivenciar a realidade como partícipe dela. Todavia, hoje conhecer algo é dominá-lo (“eu domino…” psicologia, matemática, geografia etc.), o que está longe de significar um exemplo vivo do que sabe. É por isso que, como se diz hoje, na prática a teoria é outra.

Em fins do século XVI e durante o XVII, da Europa para o mundo, nasceu simultaneamente a falência e a glória de nossa civilização: a ideia da superioridade da espécie humana à natureza, e que esta existiria para o único propósito utilitarista de servir à sua necessidade. O pressuposto básico do humanismo de então – isto é, sob a égide da nascente burguesia, da iniciativa privada – foi a crença no poder de controle absoluto de toda a realidade, através da razão e da tecnologia; a fé na nossa capacidade para controlar absolutamente o nosso próprio destino, sob a crença de que a natureza sempre nos provirá de recursos, se não infinitos ao certo substituíveis. O gérmen perigoso de toda essa estupidez humanista, que hoje entenderíamos por antiecológica, foi a ideia de que o mundo natural existiria apenas como um meio para o fim humano. Assim, na herança dessa onipotência da arrogância do humanismo, ainda hoje muitos têm dificuldade em aceitar que alguma coisa chegou a ponto de estar definitivamente fora do nosso controle, de que profundas depredações socioambientais impliquem na importante restrição ecológica da irreversibilidade de sistemas vivos. Na afirmação narcisista dessa lógica da força, sobre o que tenho poder tenho direito. E temos o poder da morte. Para lembrar Erich Fromm, em O Coração do Homem, a força é sobretudo “a capacidade para transformar um homem num cadáver”. Destaco também aqui o livro 1984, de George Orwell, que dá provas desse absolutismo presunçoso.

Palavras como fraqueza, ignorância ou incerteza desagradam os humanistas na modernidade, justificando o “erro humano” pondo a culpa em algum mecanismo defeituoso das máquinas, por nós mesmos criadas. A própria morte é evitada (pela ciência ou pelas literaturas fictícias, que refletiriam um anseio popular) como se não fosse natural ou como se fosse mais um obstáculo à tecnologia a ser superado com o tempo. Só muito recentemente vimos nascer a tanatologia, com Kübber-Ross, Sobre a morte e o morrer, abordando brilhantemente o morrer como uma qualidade terapêutica de vida, da medicina. A imortalidade espiritual implicaria então em um anti-humanismo ou no máximo o lado bom de um humanismo arrependido. Vale dizer que tudo isso estaria corroborado pelo pressuposto da infalibilidade da razão e a soberania da ciência sobre todos os valores pessoais que não os da verdade objetiva do positivismo. Dessa maneira, o homem teria o direito de realizar qualquer ação desde que tivesse poder tecnológico para tanto. Porque a ciência não é neutra nem isenta dos financiamentos multinacionais das indústrias, se uma tecnologia puder ser usada para fins maléficos, assim acontecerá.

Outra interessante e cuidadosa observação é o historicamente novo e terrível fenômeno: a produção de energia excedente. Risco que ameaça a existência planetária devido ao poder e tecnologias, principalmente nucleares, que foram acumuladas com o absoluto fim de dominação da natureza pelo homem. Isso ao lado dos primeiros e rápidos indícios de que os recursos naturais começam a acabar, não porque fontes de água ou matas virgens pontualmente estejam extinguindo-se, mas sim porque a falta de apenas um elo na cadeia ecossistêmica torna-a inteiramente nova, reconfigurada pelo caos, com lamentáveis surpresas, para novos ciclos planetários e outros espécimes adaptados. A esse respeito, ninguém melhor citar que James E. Lovelock, autor de Gaia, um novo olhar sobre a vida na Terra, publicado em 1979:

“…qualquer espécie que afete o ambiente de maneira adversa está condenada – mas a vida continua (…). Tudo depende de você ou de mim. Se virmos o mundo como um organismo vivo de que somos partes – não proprietários, nem inquilinos, nem mesmo passageiros -, poderíamos ter um longo prazo à nossa frente e a nova espécie poderia sobreviver para aproveitar esse “tempo concedido”.[1]

Com a então “hipótese de Gaia”, hoje cientificamente comprovada, garante-se uma plena integração ecológica, em que o conservacionismo não prioriza nem o homem nem a natureza no ecossistema vivo. Lovelock oferece, positivamente, outro argumento que o de “valor de existência” não humanístico. Evita com isso a tendência ao naturalismo romântico; ou seja: a defesa da natureza contra o homem. Visto que, postular o primado da natureza sobre o homem, como adoram muitos fazer, é simplesmente inverter as extremidades; valorizar o outro protagonista oculto. É a disputa ilusória do pernicioso dualismo separatista que tanto ainda se persiste no ranço de Descartes. A saída do dilema humanismo versus ambientalismo é, portanto, o mito de Gaia; é centrar a atenção na interdependência entre o homem e a natureza – imbricados numa única complexidade sistêmica, na teia estimulante da vida. Da arrogância humanista à humildade ecológica… Cedo ou tarde, eis a história de um futuro que não podemos esperar mais e ante o qual possa ainda o homem acordar a missão renascentista de seu velho sonho: ser um deus natural. Missão por Deus a ele designado quando nele esse sonho nasceu.

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[1] LOVELOCK, James (1988). Gaia: Um olhar sobre a vida na Terra (apud FERREIRA, L. C. A. Questão Ambiental. Sustentabilidade e políticas públicas no Brasil. São Paulo: Bom Tempo Editorial, 1998, p.144-145).