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Como é uma sessão de Filosofia Clínica?

Antes de tudo, é essencial haver um profundo amor no trabalho do atendimento clínico, amor ao próximo. Uma relação de empatia que, naturalmente, é ainda mais viva quando acontece pela sintonia da afinidade e da confiança entre o terapeuta e o(a) seu(sua) partilhante. Assim como, na etimologia grega, o filósofo é “um amigo da verdade”, o filósofo clínico é “um amigo cuidador das verdades subjetivas do outro”, dos seus padecimentos e também das suas alegrias.

Essa terapia pode acontecer em diferentes lugares: no consultório, a distância, em parques etc., tudo dependerá da qualidade da interseção entre o filósofo clínico e seu(a) partilhante. Em princípio, as consultas podem ser feitas em variados espaços, sendo mais produtivas se mais adequadas às necessidades, à identificação ou ao conforto do(a) partilhante: seja em um passeio, à mesa de um café, na própria residência do partilhante e outros. Todavia, os lugares mais práticos e comuns têm sido de fato no consultório, por telefone e pela internet.

Quem é acolhido(a) e atendido(a) pelo método da Filosofia Clínica é chamado(a) de “partilhante”, porque junto ao terapeuta partilha uma caminhada existencial de aprendizagens e transformações íntimas. O filósofo clínico é inteiramente dedicado ao outro, enquanto se dá a terapia. Significa que a clínica filosófica é um exercício relacional, uma ética cuja vivência e significados são os frutos do encontro entre o filósofo clínico e o(a) partilhante.

A Filosofia Clínica evita o conceito de “paciente” e não trabalha com a polarização “saúde-doença”, termos que historicamente, muitas vezes, foram associados à condição passiva e submissa do outro, ferindo sua dignidade humana com possíveis estigmas psicopatológicos das chamadas doenças, transtornos, síndromes ou distúrbios mentais. Mesmo reconhecendo o valor de outras terapias e dialogando com elas, em trabalhos multidisciplinares, o filósofo clínico não utiliza a priori teorias universais do ser humano, sejam psicológicas, psiquiátricas, antropológicas, filosóficas, sexuais, religiosas ou outras. Nesse sentido, a Filosofia Clínica não pertence à área da “saúde mental”, nem assume posturas acríticas que induzam às classificações diagnósticas ou quaisquer valores baseados em princípios da psicopatologia ou noções de equilíbrio/desequilíbrio mental com base em uma suposta “normalidade” estatística. Evita com isso os perigosos riscos, infelizmente ainda tão comuns, de violar a singularidade autêntica do partilhante em nome de “ajustes” culturais, “curas” científicas, valores, emoções, comportamentos regulatórios etc. Uma intenção, mal disfarçada às vezes, de liquidar a qualquer custo no outro suas dores, tristezas, mal-estares e vivências íntimas apelidadas como feiuras, esquisitices ou insanidades, tornando as pessoas mais “produtivas” ou menos “incômodas” na roda social.

Também não utiliza o termo “cliente”, fugindo à semântica da ênfase comercial nos vínculos da terapia. Naturalmente, o carinho e o cuidado defronte o outro é uma entrega inegociável, apesar da relação profissional remunerada, estabelecida no acordo ético do diálogo.

E na prática, como isso acontece?

Na prática, esse processo filosófico clínico acontece em dois belíssimos momentos. Primeiramente, é necessário conhecer o mundo da pessoa na perspectiva existencial dela própria, sem conduzi-la ao modo de pensar, de sentir ou de agir do filósofo clínico. Isso para poder “ver” com “os olhos” dela (isto é, metaforicamente pela perspectiva dos seus óculos existenciais), conhecer a sua visão de mundo – o quanto possível. Não se tratam, nem de longe, de “aconselhamentos” professorais, segundo o pensamento de algum filósofo ou das “lições de vida” pré-moldadas do terapeuta. Acima de tudo, a Filosofia Clínica é um dos mais belos exercícios de alteridade, isto é, de respeito e promoção da potência de autenticidade de cada pessoa.

Na primeira parte, em algumas sessões iniciais, a terapia é feita com aprofundamentos intensos na escuta e na análise da historicidade de vida da pessoa, atendida na terapia. O filósofo clínico procura conhecer seu(sua) partilhante em um sentido amplo e profundo, não apenas restrito ao tema imediato das queixas que o(a) levaram à terapia. E o faz através da sua história de vida, interior/exterior, factual/imaginária, narrada por si mesma e ambientada nas circunstâncias do mundo entorno, em que tais narrativas se deram. Um procedimento que respeita os dados de semiose utilizados por ele(a) (fala, escrita, desenho, música, dramatização etc.), com um mínimo de interferências por parte do filósofo clínico, a fim de não conduzir e falsear a originalidade intencional do pensamento do(a) partilhante.

Para isso, o filósofo clínico se utiliza de várias epistemologias e métodos originalmente filosóficos a fim de assegurar um conhecimento fidedigno da singularidade do outro, o mais próximo das suas próprias vivências íntimas. Trata-se de um estudo por aproximação, a fim de compreender a maneira como como estão organizados os acontecimentos existenciais na malha intelectiva do(a) partilhante (seus pensamentos, corporeidade, valores, emoções, linguagens etc.). Bem mais do que um dito popular, a fim de se respeitar as pessoas, é preciso antes aprender como elas são, ciente que a resposta existencial será única para cada ser no seu contexto de vida. Afinal, é preciso muita filosofia – de Filosofia Clínica – para saber não prejulgar o outro e acolhê-lo em sua infinitude própria.

Para ser íntimo das questões importantes, sobretudo por ainda não conhecer nada da vida do outro, além das primeiras impressões, o filósofo pede ao partilhante que lhe faça um primeiro relato panorâmico da sua história, desde suas primeiras lembranças até os dias atuais... Em princípio, procura-se compreender literalmente a sua narrativa, segundo seus próprios termos empregados. Respeitando também os dados de semiose utilizados por ele (fala, escrita, pintura, dramatização etc.), cumpre-se um mínimo de interferências voluntárias por parte do terapeuta. Um procedimento denominado agendamento mínimo, devido ao filósofo clínico agendar o mínimo de temas ou influenciações, ditas ou implícitas, a fim de não direcionar a fala da pessoa que partilha enquanto ele a escuta. A intenção disso é compreender o sistema lógico próprio subjacente ao curso do pensamento do partilhante, conforme as informações subjetivamente relevantes no contexto da sua fala e das comunicações não-verbais utilizadas (...).

Feito isso, o filósofo clínico buscará localizar existencialmente a pessoa no contexto do mundo que a envolve, delineando o universo no qual a pessoa está inserida objetivamente, através de cinco categorias hermenêuticas básicas do entendimento. Processo denominado como exames das bases categoriais. São elas: ‘assunto’, ‘circunstância’, ‘lugar’, ‘tempo’ e ‘relação’ (conforme se esclarecerá em detalhes mais adiante). O interesse disso é fundamentar um conhecimento lúcido e aproximado, um parâmetro de comparação entre as medidas do íntimo – as interpretações subjetivas do partilhante tal como ele perspectiva o mundo – e as mensurações sociais convencionadas, isto é, a realidade organizacional da sociedade em que ele se situa e interage. Uma importante compreensão das implicações, dos elos de relacionamento entre a subjetividade singular da pessoa e a objetividade do ambiente em torno dela (...).

A estrutura de pensamento é o modo íntimo como a pessoa está vinculada existencialmente no mundo. Descreve a forma como essa consciência pensa, sente, toca, valoriza as coisas, entre outros... O filósofo observa o que na estrutura de pensamento constitui um padrão ao longo da vida – enquanto tendência ou inércia existencial – verificando-se o que está atualizado e o que constitui novidade em seu modo de ser. Há características ou tópicos existenciais que, por mais fortes e determinantes que sejam para uns, para outros simplesmente inexistem (...).

Assim sendo, colhidos os dados das bases categoriais e feito um estudo das relações intrínsecas entre os tópicos da estrutura de pensamento, torna-se possível o entendimento da complexidade e dos nexos subjacentes da psique investigada. Dessa forma, quase sempre é possível identificar e bem contextualizar as informações recebidas do partilhante, muitas vezes dispersas, compreendendo as mais importantes razões dos conflitos existenciais que o motivaram a procurar ajuda do filósofo clínico na terapia. Só então é possível ao filósofo clínico ter uma percepção ampla de como um indivíduo é por ele mesmo, fenomenologicamente.

GOYA, Will. A escuta e o silêncio: a história de Laura – Terapia em Filosofia Clínica (4ª ed. Porto Alegre: Mikelis, 2020, p. 96-106).

Já na segunda parte, feita a pesquisa do modo de ser da pessoa, o filósofo clínico possui um conhecimento diagnóstico artesanal da estrutura de pensamento dela, absolutamente única, sendo capaz de ampará-la especificamente em suas demandas existenciais, através de um devido planejamento clínico.

Com um amplo e aprofundado conhecimento sistêmico do partilhante, das suas implicações internas, causas e efeitos, é que o filósofo clínico adquire condições lúcidas de avançar propositivamente. Momento em que já sabe oferecer amparo e devidas estratégias de ajuda ao outro. Buscando alternativas subjetivamente viáveis às mudanças que se mostram importantes, evitando-se os sofrimentos desnecessários ao partilhante, o filósofo clínico pode então empregar submodos terapêuticos, modos submetidos ao jeito da autenticidade de cada um. Isto é, são procedimentos clínicos existencialmente adequados à pessoa com o objetivo de nela se desfazerem possíveis conflitos existenciais, choques tópicos contidos na sua estrutura de pensamento. Noutras palavras, trata-se do conjunto de recursos existenciais internos, próprios da malha intelectiva, com os quais o partilhante consegue resolver suas questões (...).

Mapeamentos e diagnósticos existenciais elaborados, cabem os exercícios terapêuticos de efetivação da autenticidade do partilhante. Enquanto algumas pessoas encaminham seus problemas via reflexão a respeito, outras o fazem pela fé, pelo isolamento social, comprando futilidades, conversando com amigos, memorizando volumosas listas telefônicas ou saindo para dançar até a exaustão etc. Sem os cuidados éticos e epistêmicos da metodologia empregada, um filósofo clínico não ousaria afirmar quais alternativas constituiriam benefícios reais ou saídas contraproducentes, disfarçadas de alento (...).

Claro, há muito e muito mais a dizer sobre a prática de consultório, com detalhes, etapas e subetapas, exemplos e pormenorizadas explicações momento a momento, correlacionando as teorias com a prática – aqui jamais separadas...

(GOYA, 2020, p. 106-7).

Quanto ao tempo de terapia, cada partilhante tem sua própria necessidade e interesses. Quanto à frequência, é importante haver uma sessão semanal, com cerca de 60 minutos. Para aqueles(as) que desejam rapidez no tratamento ou mesmo que precisam de orientações urgentes, pode-se marcar duas ou mais sessões semanais, especialmente na primeira fase da clínica, na escuta filosófica.

Considerando apenas as experiências subjetivamente avaliadas como “boas” e “produtivas” pelos próprios partilhantes (segundo a minha prática clínica), há terapias que mal duraram poucos meses e outras que se fortaleceram e se renovaram com o passar dos anos. Alguns, após a conclusão de um processo terapêutico, decidem voltar à clínica, por gosto ou necessidade, para consultas periódicas de revisão e acompanhamento. Os casos variam.

(GOYA, 2020, p. 107-8).

É sempre bom atentar para o fato de que a Filosofia Clínica é uma, dentre outras valiosas práticas terapêuticas. Com certeza ela pode não ser adequada a algumas pessoas, especialmente àquelas que buscam técnicas e arcabouços teóricos prontos a fim de justificarem seus modos de ser ou mesmo se desejam respostas apressadas para conduzirem suas vidas e apaziguarem logo suas angústias.

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