Iniciei meus primeiros atendimentos, supervisionados por Lúcio Packter (sistematizador da Filosofia Clínica no Brasil) no ano 2000. Desde então, lúcido do meu propósito mais sublime, jamais abandonei meu papel existencial de terapeuta, atendendo principalmente no consultório; mas também a distância, no Brasil e no exterior. Antes, desde jovem já experimentava no íntimo a vocação para a prática do cuidar, motivo pelo qual busquei diferentes outras formações de terapeuta, que me fizeram percorrer variados cursos. Convergi cedo minha atenção acadêmica para a prática terapêutica, guiando o rumo das minhas pesquisas, conferências e publicações. Hoje uma história de duas décadas de prática clínica em consultório e quase trinta anos de docência universitária, acumuladas dentro de mim.
Coincido assim o meu trabalho com meu próprio sentido de vida, ajudando as pessoas a se tornarem mais autênticas consigo mesmas, com suas histórias e circunstâncias. Sobretudo em seus momentos mais difíceis, facilito e fortaleço seus processos criativos de autoconhecimento, de modo a conseguirem pensar melhor sem eu pensar por elas. Essa é a missão do filósofo clínico: saber falar ao seu partilhante da terapia de tal forma que ele escute o melhor de si mesmo e, se um dia necessário, o melhor do terapeuta.
Não é difícil constatar que muitas vezes podemos ficar confusos ou perdidos diante de escolhas difíceis ou crises existenciais, conflitos ideológicos, angústias no corpo e na alma, atribulações na prática profissional ou nas relações sexuais, reformulações íntimas, paixões, perdas e outros sofrimentos. Períodos em que é fundamental – às vezes, imprescindível – buscar um acompanhamento especializado, de quem sabe ouvir sem julgamentos, compartilhando com ele suas inquietações, a fim de poder ser amparado(a) e orientar-se adequadamente.
Ainda que o trabalho de um terapeuta possua remuneração, como qualquer ofício competente, o coração de um filósofo clínico jamais é precificado; porque, antes, nele é feito de verdadeira boa vontade. Como poderia ser, em mim, diferente disso? Não acredito poder ser de outra forma. Razão e emoção disso, sempre que aceito um novo partilhante na terapia, resgato em mim um profundo amor pela humanidade do outro, um grande respeito e admiração pelo modo irrepetível de cada um. Agradeço todos os dias pela grandeza emocionante do meu trabalho, um ato reiterado de amor ao próximo. Nada fácil, nem mais bonito. Qual certa vez escrevi no poema “Identidade”:
Amar o próximo não é amar o semelhante,
É aproximar-se do que nele somos diferentes
E deixar vir o mistério de quem nunca se revela por inteiro.
Repetidamente, acolhedor.
Amar é estranhar atenciosamente aquele que se ama,
Como um hóspede sempre recém-chegado ao coração.
É perguntar-se em pensamento: quem é você?
Eternamente apaixonado pela silenciosa resposta de cada dia.
GOYA, Will. Fazer café, amor e filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas (2. ed. Porto Alegre: Editora Mikelis, 2018, p. 185).
Nasci naturalmente filósofo, ainda que somente anos depois tenha obtido este título acadêmico na graduação e no mestrado. Todavia, faço-me todos os dias filósofo clínico, terapeuta no cotidiano, dentro e fora do consultório, nas minhas relações humanas e espirituais.
Em Goiânia, Goiás, fundei a Casa de Estudos Francisco de Assis – Centro de Filosofia Clínica, onde atendo em meu consultório e sou o professor titular responsável pela “Especialização em Filosofia Clínica” e pela “Formação em prática de Filosofia Clínica”, formando novos filósofos clínicos e qualificando diferentes profissionais na ética e na arte terapêutica da escuta filosófico clínica.
***
Enquanto filósofo clínico e poeta, ainda hoje, sinto com alegria e gratidão a oportunidade de eu ser em todo caso uma pessoa ‘melhor do que nada’... Sem fronteiras territoriais, com o mesmo céu em toda a Terra, basta-me abrir a janela para ser vizinho de Fernando Pessoa. Com as nuvens por testemunhas, a atmosfera que percorre nossas casas é a mesma em todo o planeta. O que nos separa é tão só uma difícil janela fechada. Porém, quando acontece de eu desterritorializar-me dos apegos identitários, em minha alma uma janela se abre para a total liberdade humilde de eu ser outro e para os outros. Porque vizinhos de janela, eu (apesar de mim) posso ouvi-lo em meus próprios pensamentos: ‘Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo...’
GOYA, Will. A escuta e o silêncio: a história de Laura – Terapia em Filosofia Clínica (4. ed. Porto Alegre: Editora Mikelis, 2020., p. 13-4).