Em Busca de um Milagre. Dica de um jovem filósofo para se resistir à tentação de ser santo

Em Busca de um Milagre

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Em Busca de um Milagre. Dica de um jovem filósofo para se resistir à tentação de ser santo

Will Goya, filósofo clínico

 

Crônica filosófica publicada na Revista São Luis Orione (v. 1 – p. 217-221 – jan./dez. 2007. ISSN 1982-2308).

 

 

 

Vamos admitir: não somos mais do que nos fizemos com nossas próprias escolhas, quase sempre substituindo o esforço da esperança pelo seu inverso, acostumando-nos a tomar por verdadeiro que já somos o que ainda esperamos realizar Como sempre houve muitas pequeninas e importantes coisas para serem feitas na concretização dos nossos sonhos, todo aquele que espera nunca alcança.

[Ao menos foi assim que eu escrevi, pensando impulsivamente, em 2007. Hoje refaria todo o texto, mas… É claro que há muito além do que afirmativas universais como a do parágrafo anterior, tão arrogantemente assim postuladas, apesar da boa-fé. Como dizer isso de outra forma, filosoficamente? “É isso e outras coisas – et cetera].

Há quem diga ter fé sem nunca haver sentido esperança. A primeira é uma certeza absoluta, uma consciência quite consigo mesma, que se satisfez com alegria em haver entregue tudo de si, permitindo suportar todo sacrifício do mundo, pois já se encontra confiante que Deus lhe aceitou no reino dos céus. Ter fé em Deus, na concepção cristã, não significa crer que Ele nos livrará das dores e desafios. Nunca poupou nenhum santo. Ao contrário, ter fé é aceitar de bom grado a cruz dos próprios pecados ou erros e perdoar-se responsavelmente, assumindo as consequências com a cabeça erguida e doçura no olhar. Como se vê, a exemplo maior de Cristo, a fé não salva nem recompensa neste mundo. Mais ainda, após receber na face a malícia, a traição, a violência e a crueldade dos maus, perdoá-los. Desde sempre, onde há tantas injustiças, a única escolha é a de como sofrer. O amor retira as queixas inúteis e se oferta com alegria. Quem tem fé não pede solução, desfaz os problemas humanos sob a vontade do mais alto. Entrega-se e corajosamente agradece, pois tudo o que lhe vem antes da morte é antecipação do céu, degrau por degrau. Nada mais difícil nem mais poderosamente simples.

A esperança é digna dos homens comuns e tem por sinônimo a lucidez da liberdade de escolha e a coragem da escolha da liberdade. Sim…  são coisas bem distintas, como sabia o filósofo Erich Fromm. Com resumo, desde que o indivíduo esteja de posse de uma mínima capacidade de raciocinar, 1. todo homem é livre para escolher, em sua inevitável liberdade natural de pensar. 2 E, considerando os maus caminhos e os vícios que já não conseguimos facilmente nos desprender, apesar dos esforços, todavia podemos nos livrar de muitos estados de dependência que nos aprisionam. Liberdade negativa, que pode ser entendida como uma “liberdade de”. 3. Por fim, quem bem mereceu livrar-se do mal e do peso de seu passado está “livre para” progredir, conquistando fronteiras ainda desconhecidas em sua intimidade e inovando a vida com os acréscimos do bem. Vive então uma profunda liberdade de avanço. Mais que selecionar alternativas, antes, tal liberdade cumpre saber criá-las. Entendido isso, o homem que não se cria é cria dos outros.

Em se tratando de caráter, o homem não se torna livre, nasce livre e se torna escravo de suas más escolhas. Mas ao exercitar os músculos morais da esperança pode ainda se libertar de suas próprias paixões e, vencendo a si mesmo, renascer melhor ou nascer completamente para o propósito a que veio. E se tiver fé poderá vencer o mundo que o oprime, pois aquele que não teme a morte é invencível por definição. Quem vence a matéria deixa o corpo por testemunha. Na fé, o poder de mover montanhas só pertence àqueles que já não têm mais o desejo desse poder.

Frequentemente, a ausência de criatividade, da doação amorosa de nós mesmos nos leva a querer roubar dos outros o resultado de seu merecido progresso. É a inveja, sempre acompanhada do sentimento de vingança sobre aqueles que revelam nossa fraqueza quando nos exigem esforço próprio. Os heróis anônimos da sociedade, que lutam para viver o melhor de si mesmos, cada dia um pouquinho mais, tornam-se involuntariamente uma afiada lembrança das dívidas acumuladas que as más consciências carregam consigo. A auto culpa é, dessa forma, a verdade despida pelas próprias mãos que a trajaram de vergonha, de desonra e de pudor. Como bom seria se pudéssemos nos aliviar da alfaiataria das carências alheias que tanto nos desejam pôr na moda de suas ridículas medidas. Fosse assim conosco, seríamos com os outros também? Há! quão triste é saber que a felicidade vizinha nos incomoda com o peso da nossa ignorância irritada. Perigo que os fracos de espírito oferecem aos fortes. Aparente paradoxo de Nietzsche: a força deve temer a fraqueza. Porém a verdade se revela ainda maior: mau é quem causa temor e bom aquele que não tem nada a temer. Por que não haveríamos de julgar o lobo bom e o cordeiro mau, se entre os animais nenhum é ruim? Os gregos e romanos antigos pensariam assim. Porém, a interpretação judaico-cristã substituiu o valor da força pela astúcia, o orgulho da honra pela culpa, e a moral dos senhores, pela dos escravos. Quem não soube ser cristão ao ponto de não se curvar ao reino de César, preferindo o autossacrifícios à submissão, tornando-se para si mesmo a verdade, o caminho e a vida, achou mais conveniente o discipulado da obediência, da vaidade e covardia de se sentir religioso. Foi assim que lenta e profundamente a imitação cristã tomou lugar da iniciativa de Jesus. Quando toda a Europa tornou-se cristã, pareceu mais lógico o Império Romano fazer do cristianismo sua religião oficial. Afinal, foi bem mais fácil governar apontando rijo o dedo de Deus sob os pecados do mundo em cada coração.

Porque a dúvida constante instiga a análise e porque a deficiência é indiscreta, é infinitamente mais cômodo forjar a fé, fingir-se bom e, mentindo para si mesmo, convencer os semelhantes do que lhes é comum: “o inferno são os outros”, como lembrava Sartre. Afinal, é preciso fazer alguma coisa com esse lixo psíquico que se acumula na alma dos que preferem a certeza de que tudo um dia se resolverá sem ao menos guardarem a demorada esperança nos conflitos de viver os problemas cotidianos. É por isso que não é assunto popular os heróis e santos de nossa época. Hoje em dia não basta ter força de lutar corajosamente e ser herói, é preciso ser “super”, bonito e ainda usar roupas coloridas. Quem hoje pretenda adquirir a estatura de santo, convém fazer um bom curso de marketing e televisão, sobre “a arte de falar em público”, sobre como ser um líder da coletividade de “autoajuda” e, é claro! ter muito orgulho de ser humilde. Engana-se quem pense que os grandes homens da antiguidade clássica ou medieval não eram também reconhecidos em sua época, pois o cinismo é uma estrutura social moderna. Naturalmente, o tempo melhora o entendimento.

Fenômenos como essa falsa fé, essa mentira que se assemelha à verdade pela mera força da convicção, é chamada de “má-fé”. O inquilino da fé alheia, que só se convence doutrinando os outros sob o argumento de que a maioria não pode estar errada, é tão mais covarde quanto mais líder e popular. Em tese, deveríamos ser, para cada milagre recebido, os próprios doadores, e não mendigos de preces de reclame e sacerdotes de profissão. A passividade de se esperar por um milagre alheio, vindo da “sociedade”, de um futuro próximo ou de um deus que não atue através das forças da alma, resultaria num ódio ao trabalho dos que são verdadeiramente heróis em cada gesto de autêntica bondade, o que se revela em antipatia “gratuita” àqueles que são, de alguma forma, alegres e independentes. Seria preciso aqui explicar porque Jesus – que não deu outro sentimento que não o amor, nem outra sabedoria que não o exemplo – foi tão odiado? O verdadeiro dolo cristão não foi ter posto na cruz o doce rabi da Galileia, pois em sua época, defronte os seus olhos, não o fizéssemos já seríamos bons. Não, é precisamente o oposto: nosso mal está na hipócrita redenção dos pecados em cada ritual de purificação. Não é estranho que o mal se redima tão facilmente com preces e adorações públicas de louvor e, uma vez aliviada a culpa, recomeçarmos a mesma trilha de onde paramos?

Não há mal em ser mal, conquanto seja esse o nosso verdadeiro tamanho e neste conhecimento resida nossa humildade e nosso desejo de progresso. A fraude consiste e se delata em sentir-se bem, por se crer bom, dizendo-se um pecador, mas com sentimentos de impaciência quando o outro possui as mesmas faltas. Amar o próximo como a si mesmo muitas vezes é perdoar-se, curar as acusações na fonte. Mas nem sempre. Quem não se perdoa, tudo bem… pode ainda ser legítimo cristão, basta que, por isso, não acuse ninguém. Ora, nem sempre é preciso primeiro se amar para amar os outros. Por que haveria de ser isso uma regra? Os que teimam em fazer da lei de amor uma penalidade a ser cumprida rigorosamente e sem descanso a si próprio, fazem dos sentimentos um grilhão e da ternura um castigo. E não suportando a leveza de um sorriso sincero, deixam cair sobre a face o peso da mentira, mostrando os dentes. Amar o próximo como a si mesmo tem dupla interpretação, e pode facilmente ser compreendido como o mandamento do egoísmo.

Dizendo essas coisas, os filósofos provam o seu valor. Percorrêssemos a história da filosofia, inevitavelmente adiantaríamos séculos de maturidade. Todavia, nunca é demais recomendar o conselho do grande escritor francês André Gide: “Crê nos que buscam a verdade. Dúvida dos que a encontraram”. Fossem aqui chamados outros filósofos para a reflexão, continuaríamos em muitas páginas, quem sabe por horas a pensar sobre os dramas da humanidade em sua jornada de espiritualização. É bastante comum, quando se diz filósofo, alguém perguntar: “qual é o seu filósofo preferido?”, como se tratasse de uma distração, de uma vaidade favorita. No entanto, ler, escrever ou pensar filosofia com honestidade, sem autoengano, é tão sofrido quanto deixar morrer nossas crenças e ilusões mais queridas, tão aceitas e necessárias como a própria carne. Quem, refletindo, em nada se altera, o que fez realmente com seu tempo além de envelhecer? Mas, a filosofia, igualmente, é tão bela e poderosa que toda mínima lucidez conquistada vale um pouco do direito de renascer melhor, de ser outro para si mesmo a cada nova ideia. Ela nos faz lembrar de quem queremos ser, no bem-aventurado tempo da esperança.

Mal acostumados com um milagre súbito, para o espanto dos olhos, desejamos ver a cura dos cegos, alguém andar sobre as águas, abrir os oceanos e, retirando um coelho branco da cartola, ouvir a multidão aplaudindo. Ah, como é bom ser criança! Viesse o milagre pela filosofia, tudo se resumiria assim: “para ser feliz, pense nos outros”.