Meio Ambiente ou Ambiente Inteiro?

Meio Ambiente

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Meio Ambiente ou Ambiente Inteiro?

Will Goya, filósofo clínico

 

Publicado na revista Fragmentos de Cultura (Goiânia, v. 18, n. 7/8, p. 619-623, jul./ago. 2008).

 

Resumo: mesmo que o paradigma ecológico seja de natureza sistêmica, é comum o uso de pensamentos mecanicistas, com modelos de fragmentação no discurso vigente, feito a crença moral de que os indivíduos devem fazer apenas “a sua parte”. Esquece-se assim que a parte expressa as necessidades do todo, e que uma pessoa também acumula em si as vontades historicamente nela determinadas.

Palavras-chave: meio ambiente, fragmentação, pensamento sistêmico.

 

Abstract: Exactly that the ecological paradigm is systemic in nature, is common the use of mechanist thoughts, with models of fragmentation in the current discourse, made the moral belief of that the individuals must only make “its part”. The part is forgotten express as soon as the needs of the whole, and that a person also accumulates in itself wills it historically determined.

Key words: environment, fragmentation, systemic thinking.

 

 

Em agosto de 2004 escrevi, num poema, que a grandeza de uma pedra está no seu tamanho, mas no ser humano não. Por menor que seja, ele é infinito, detalhadamente incalculável. É o que se pode traduzir por espírito. O mais vil humano ainda é maior que uma coisa, qualquer coisa. Mas dizer que uma camisa vale menos do que aquele que a veste não é bastante para convencer a muitos. Entre a camisa e o peito, a diferença está em saber onde moram os desejos do coração. A camisa não sabe, mas há quem se sinta pela metade, despido. Seja como for, é chegado o momento histórico em que o homem se entenda como uma mesma vida que pulsa nos dois lados da pele. Momento em que ser inteiro é “ser-com” o mundo que nos envolve, simultaneamente “dentro-e-fora”. Mas isso é algo bem distante do sentido mais popular de ecologia.

Afinal, o que veste o ser de seu caráter humano? Além do corpo e da matéria que nos identificam, uma das coisas que nos faz gente – por estranho que pareça – é algo que nunca nos chega inteiro, uma eterna sensação de incompletude. É a certeza congênita de que nunca somos totalmente, ou por muito tempo, aqueles que gostaríamos de ser; de que o mundo não está do jeito que quereríamos que fosse. Por desgosto e para concerto, refazemos nossas escolhas, aumentando a satisfação, diminuindo os pesares ou fugindo às angústias da responsabilidade. O ser humano inventa alternativas, cria seu destino e, pelos erros e acertos, elabora pensamentos não só a respeito de quem é, mas também sobre quem acha que deva ser.

A julgar pelo tempo – e cada um à sua medida – o homem só se define pela metade, pelo que soube ou pôde escolher das ofertas do seu destino. Metade é passado, metade é futuro. Viver é atualizar-se, redefinir-se. Autoconhecimento é só metade da história… A outra metade é muito maior, é o mundo inteiro, no qual se engaja ou não. Aquele que se esquece dos outros, com os quais se relaciona, é menos que metade, é fragmento, pedaço. Homicida ou suicida moral, quando um egoísta só olha para si mesmo e nega as necessidades do mundo, em que ele próprio vive e depende para viver, não sabe mais o que é alto ou baixo, certo ou errado, bem ou mal. Se não houver ninguém para comparação, se já não houver mais diálogos, se não se puder mais ver nem ouvir as discordâncias dos outros, não se conseguirá mais descobrir o próprio tamanho. Se isso tudo acontecer, então não saberemos mais a diferença entre um homem e uma pedra, momento em que trataremos as coisas como nossos semelhantes e o próximo como o mais distante dos seres.

Com excesso, há muitos livros e discursos já bem conhecidos sobre a barganha do SER pelo TER, que retalhou a unidade do espírito no sofrimento de farrapos humanos, uns por ter, muitos por não ter, mas quase todos pela escolha de não se serem… Desde os antigos filmes americanos, onde nascer era ser igual e as exceções sempre eram corrigidas com a magia da vontade de vencer, até o cinema atual, em que os bandidos são charmosos e a brutalidade é apenas um combustível de diversão, o marketing provou ser, à maioria das pessoas, o valor mais importante de que o ser humano é capaz. Marketing pessoal virou sinônimo de personalidade própria. Nada mudou, aparentemente. As análises freudo-marxistas da contra-cultura (Erich Fromm, Marcuse, Adorno e outros) foram recicladas, diminuídas, falseadas e envernizadas com aquilo que faz o ouro brilhar. Viraram frases doces, bonitas, de efeito e auto-ajuda, contra o materialismo, feito mel no gume da faca. Hoje estão sendo vendidas para a nova geração de religiosos do amor-próprio e do sucesso profissional. Bom… é importante sempre dizer isso, mas eu estou cansado da repetição e não vou continuar.

Negar a dignidade do outro é perder a própria, é cortar o vínculo mútuo de pertencimento ao título de humanidade. Há duas formas extremas de fazer-se des-humano: reduzindo o homem – qualquer homem – à condição de coisa; ou elevá-lo abaixo ou acima de todas as coisas. O primeiro é o clássico materialismo moral, o sonho dos pobres e o gozo dos ricos. Já o segundo caso é disfarce sutil, de muitas formas dissimulada, e uma delas costuma ser a popular e falsa idéia de que meio-ambiente não começasse a partir do meio em que vivo, com todos os problemas urbanos e sociais, incluindo as questões físicas e psicológicas, mas apenas no longínquo espaço silvestre, onde posso ir pescar, tirar férias ou fazer retiros espirituais em alguma “fazenda ecológica”. O senso comum excluiu do conceito de “natureza” a condição humana.

O que há de trivial entre a pequenez e a soberba hoje se disfarça no lugar comum do marketing ecológico em defesa do meio-ambiente: a crença e má-fé de que meio-ambiente não é mais que o verde das árvores, plantas, o azul dos rios e mares, o colorido dos répteis, anfíbios, outros, mais a invisibilidade do ar e dos microorganismos. Todavia, há duas perguntas: …e a cultura, física e abstrata, as casas e edifícios, o universo mental e mundial das redes de TV e computadores, o trânsito e os estádios de futebol lotados de gente, violência, amor e ansiedades? Isso tudo que nos perpassa e envolve acaso seria menos importante ou menos meio-ambiente? Acho que muitos confundem meio-ambiente com a metade de um ambiente.

Interessa-me mais tratar daquela segunda forma de desumanidade, maquiada em verde: o pseudodiscurso ecológico da fragmentação. Como filósofo, quero publicar o oculto, não o que se esconde – ao contrário –, mas o que se nos escancara à face, quando estamos de olhos fechados. É que o ponto cego da moral dos covardes está em reduzir a complexidade da vida a somente dois lados: os bons e os maus, facilitando o entendimento e mentindo à si mesmos. Entre os totalmente bons ou totalmente maus existe contexto, dificuldades de compreensão e julgamento, e uma história para ser ouvida, com várias versões. A lógica, que é um esforço de enfrentar argumentos diferentes, concluir e novamente rever as idéias, permanecendo no diálogo aberto, é maquiavelicamente substituída pelo conceito de óbvio. Funciona assim: “eu estou certo e quem discorda, é lógico que está errado!”. Confundir lógico com óbvio é pura maldade. De resto, na conveniência do artifício, o mundo cheio de problemas em que se vive é o inimigo, não o conjunto do qual o eu faz parte. Lembrando Sartre, “o inferno são os outros!”. Como dizem, este mundo está perdido (não eu!). Ecologista, ou qualquer outro, que reclama das ações erradas que existem no mundo, sem incluir no mesmo peso o julgamento da própria preguiça das reformas, do que afinal está falando? Quem ainda não conhece o filósofo espanhol Ortega Y Gasset, da primeira metade do século XX, precisa saber o que ele diz: “eu sou eu e as minhas circunstâncias. Se não as salvo, não me salvo eu”. Viver é coexistir. Dentro e fora de mim são perspectivas da mesma realidade vivida. Fragmentar a vida é matá-la.

A parte sem o todo é uma abstração, uma licença teórica e temporária pra pensar melhor. Por exemplo: o que é um bolo de chocolate? Um conjunto de ovos, farinha de trigo, leite etc, ajuntados? Não, simplesmente. A mistura e o calor redefinem a dimensão do novo objeto. Não é mais um conjunto, é uma nova concepção em que mais importa o tipo, a intensidade, a fusão, o comprometimento, a energia empregada da relação entre as partes, enfim, algo mais do que o valor específico e isolado de cada uma. Neste caso, a diferença entre a mera soma de coisas e a existência de um objeto único e complexo se verifica também no sabor. E o que é um menino de rua? Que outra forma de concebê-lo sem avaliações psicológicas, fisio-orgânicas, e outras, em relação direta com o tráfico de entorpecentes, a economia desajustada, a política nacional, a ausência de espiritualidade urbana etc etc? Um ser específico é uma forma específica de relação.

Como justificar os tantos frutos de uma árvore frondosa senão pela necessidade de sobrevivência ecossistêmica dela mesma frente aos animais, insetos que a fertilizam nas floradas e espalham suas sementes, garantido a continuidade da espécie? Dizer que uma floresta é o que é também depende de fatores políticos, pois se ela ferir interesses econômicos deixará de ser o que é. Ora, dito isso, a tradicional definição escolar de um vegetal lenhoso (se me lembro bem como aprendi na infância), – composto de caule, ramificações e folhagens bem à cima do solo, mais raízes –, não é mais suficiente para defini-la. Árvore é um conjunto de relações variáveis e interdependentes entre si mesmas e em relação ao meio externo, seja de natureza biológica ou artificial. E isso de tal maneira difícil de simplificar que qualquer um destes componentes, quando alterado, age de alguma forma sob os demais. Entendido assim, o ecossistema de uma floresta é mais que a quantidade isolada de plantas que nela habita. Logo, não posso simplesmente retirar ou plantar uma árvore, sem um estudo das considerações de impacto no meio-ambiente em questão. Igualmente, da mesma forma é que devo pensar quando também intenciono escrever um livro e ter um filho. Complicado?

Quem queima uma floresta inteira pra plantar capim e não vê prejuízos rapidamente futuros no lucro da permuta, além de mau é burro. Crítica já bem conhecida. O que me preocupa é outra coisa, a falsa e perigosa idéia que ouço muito: “a gente tem que fazer (exclusivamente) a nossa parte”, deixando o resto para o mundo dos outros. Se eu faço algo a respeito, certamente é porque o meio em que vivo e o que as outras pessoas fizeram, de certo ou errado, me motivaram a isso, provocaram-me uma resposta pessoal. Com honestidade, é a crise do mundo que fala através do meu sofrimento e, pela minha inteligência e vontade, busca uma solução conjunta. Qualquer solução é o acúmulo de toda a história do pensamento que evoluiu a sociedade e me educou, permitindo-me hoje pensar como penso.

Não existem ações isoladas, existem consciências tacanhas e egoístas que vaidosamente privatizam as lutas coletivas e as conquistas da humanidade, sem nenhuma gratidão. Estas se acovardam em seus pequenos gestos, grandes de orgulho. Crêem que a maior parte do que ainda há para ser feito pertence aos outros. Todavia, não descobriram que quando alguém dá o máximo de si, não faz apenas uma parte, faz tudo. O máximo da vida é tudo. Porque o amor é o que une os seres para o bem comum, quem atingiu pleno amor pela vida, alcançou o mundo inteiro. Momento em que um homem reconhece-se herdeiro, irmão e agente da humanidade.

Indivíduo e totalidade não se confundem, mas também não se separam: distinguem-se. Se tudo tem o seu próprio tamanho, é bom não esquecer, como a poucos é sabido: o todo é maior que a soma das partes que o constituem. O todo é integração, sempre maior que tudo. Não é de pedaços que um homem é feito, salvo é claro, o maldito Dr. Frankenstein. Razão disso, também o “meio” ambiente não é apenas o colorido verde das matas não-urbanas desenhado no marketing ecológico, mas tudo o que existe em minha volta, inclusive eu. Meio-ambiente é tudo o que me permite pelo lado de fora definir meus limites internos, quem eu sou, e ao mesmo tempo me força o livre-arbítrio a tomar decisões que afetarão meu lado externo. Como um desejo ao seu propósito, pensar é causar, viver é coexistir. Resolver problemas é atualizar as mudanças da história.

Eu e(m) meu meio, como assim me definindo, peço a Deus que eu seja ao mundo como um pomar. Dar muitos frutos, sem olhar a quem, pela simples necessidade em ser generoso, conforme me ensinou a natureza das plantas e dos bons homens. Que eu possa ainda doar-me tanto que não saiba mais quem é o autor da doação, senão a vida que se dá a todos nós. Ser por inteiro e não meio ambiente.