Para uma ética da escuta filosófica: a historicidade de um pequeno filósofo clínico

Raizes Gregas FC-CAPA

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Para uma ética da escuta filosófica: a historicidade de um pequeno filósofo clínico

Will Goya, filósofo clínico

Publicado em: SILVA, R. Miguel. (Org.) 2016. Raízes gregas da Filosofia Clínica. Caxias do Sul: EDUCS, capítulo 8.[1]

Resumo: O nascimento da Filosofia Clínica traz em seu berço o legado espiritual de um pensamento ético. A alvorada dessa filosofia terapêutica reúne luzes de toda a história do pensamento para compor e inaugurar o seu próprio conceito filosófico da condição humana frente aos seus desafios existenciais. Recolhe desde elementos teóricos e metodológicos das heranças gregas, passando pelos paradigmas humanistas da modernidade, até os filósofos do mundo contemporâneo, convidando a refletir sobre as bases antropomórficas da atual crise de ressignificação da humanidade. Estrada percorrida e norteada pelo empenho da descoberta, da criação e do desenvolvimento da autenticidade do ser. Poeticamente traduzida como um ato de amor ao próximo, a clínica filosófica é instaurada pelo esforço do filósofo em se aproximar daqueles que lhe solicitam orientação existencial nos espaços da terapia. Caminho percorrido seja na esfera privada das individualidades, seja na esfera pública das organizações coletivas ou na dimensão sistêmica da natureza e do transcendente. Estudos narrados em estilo intimista com mesclas de análise dissertativa dos temas apresentados e descrições psicológicas sui generis do discurso objetivo. A Filosofia Clínica percorre a historicidade da pessoa no intuito de exemplificação, esclarecimento e ponte entre as instâncias tradicionais da academia e o universo psíquico das experiências pessoais. É disso que se trata esse capítulo.

 Palavras-chaves: Filosofia Clínica. Ética. Autenticidade. Estrutura de Pensamento. Singularidade.

 

Abstract: The birth of clinical philosophy bears in its cradle the spiritual legacy of ethical thinking. The emergence of this therapeutic philosophy brings along the enlightening of the entire history of philosophycal thought to compose and inaugurate its own philosophical concept of the human condition facing its existential challenges. It gathers from theoretical and methodological elements of the Greek heritage traveling through humanistic paradigms of modernity and /ou including the contemporary world philosophers, inviting to think/contemplate about the anthropomorphic origin of the existing humanity redefinition crisis. A road traveled and guided by the commitment of the discovery, the creation and development of the authenticity of the human being. Poetically translated as an act of loving the other, the philosophic clinic is established by the effort of the philosopher in getting close to those who request existential orientation in the therapy field. This path is taken in the private realm of the individualities, whether in the public field of collective organizations or in the systemic dimension of the nature and the transcendent. The studies are narrated in intimate style with blends of dissertational analysis of the presented topics and sui generis psychological descriptions of the objective dissertation. The clinical philosophy traverses ones historicity with the purpose of exemplification, clarification and bridge between the traditional authorities of the academy and the psychic universe of personal experiences.

 Key words: Clinical Philosophy. Ethics. Authenticity. The of the Structure of Thought. Singularity.

 

 

I. Considerações de início

Anteposto ao texto, bem acima das aparências, nuvens de considerações devem cair sobre os espíritos da academia com a gentileza de algumas palavras introdutórias, para dizer que este curto ensaio não é um texto autobiográfico, de pensamentos inversivos, desprimorado de lógicas e profundidades. Seu estilo, antes, é um recurso literário poético e uma sofisticação sintática vivente apenas sentida de maneira adequada pelo exercício intelectual e pela compreensão afetiva inspirados no pensamento de Lúcio Packter, sistematizador da filosofia clínica. Tal como foi escrito, a estrutura narrativa do texto em primeira pessoa em nada permite confundi-lo com ensimesmamentos psicológicos, com simples inquietações subjetivas em desabafo. Em específico, o modo impressionista, não escolhido ao acaso, vale-se didaticamente das características empregadas de um submodo filosófico clínico chamado “vice-conceito”[2], cuja temática não aborda a concorrência de fatos ou perspectivas de interesse exclusivamente pessoal. Lido e compreendido em sua totalidade, constatar-se-á que a natureza filosófica aqui em tudo subjaz e prevalece.

Pareceu-me de todo legítimo e coerente escrever a partir da subjetividade descritiva de um interlocutor que soube ocupar ao mesmo tempo os espaços conceituais da condição de aprendiz do método, de partilhante da terapia filosófica e de filósofo clínico atendente e pesquisador. Mesclas ininterruptas de mim mesmo. Captura viva de um pensamento clínico em trânsito, cujos valores morais ultrapassam o gosto individual e anunciam princípios fundantes de uma metodologia e das raízes éticas de uma nascente filosofia clínica. É nesse sentido que o trabalho se recusa à formatação lógico dedutiva em planos de visibilidade linear início-fim, o que encarceraria as operações subjacentes da dialética do texto. Medida não ingênua que traz vida ao diálogo perspectivado, construindo pontes necessárias no leitor entre as convicções subjetivas do senso comum e as reflexões de um pensamento filosófico articulado. Um balanço sensível com movimentos calibrados entre a especulação do discurso e a real prática de uma escuta filosófica sensível. Na base, da superfície ao fundo, o artigo se candidata mais à síntese do que à análise, sem jamais faltar com a estrutura de ligação que vincula os princípios teóricos supostos e os fenômenos empíricos que se assentam a posteriori. Intencionalidade e estrutura de que é feita e refeita a arte terapêutica da obra de Packter, agora vertida nas palavras do testemunho de um simples filósofo clínico.

Incômodo a qualquer ortodoxia, estou absolutamente convicto de que não é possível haver conhecimento aceitável de filosofia clínica sem o exercício da sensibilidade adquirida na prática clínica ao longo da vida. A palavra “clínica” não pode ser aqui empregada sem algum descontentamento, tão somente reduzida a uma atividade profissional, pois o seu significado mais profundo ultrapassa todos os adjetivos e qualificativos possíveis do amor que compreende e orienta, acolhe e cuida do ser. Essa teoria filosófica das vivências íntimas antes de informar um sistema de ideias ao intelecto deseja produzir na alma uma formação ética de alteridade, pavimentar uma estrada de experiências na qual outros também possam percorrer livremente a compreensão da filosofia como um exercício de autenticidade do ser, uma atividade espiritual[3].

O formalismo acadêmico, a instância terapêutica e o pensamento filosófico hoje se redefinem e se “reconjugam” em novos paradigmas de modelagem e compreensão. Embora o caráter terapêutico da filosofia tenha surgido desde o nascedouro do pensamento grego[4], é sob a alvorada do pensamento contemporâneo, a partir de exemplos como Nietzsche, Thoreau, Deleuze e Sartre, que o modo de se fazer filosofia se desconstruiu e se reconstruiu em novos moldes de argumentação para além do saber disciplinar, muito se aproximando da arte literária e da vitalidade dos diferentes saberes verbais e não verbais. Assim também foi com Lúcio Packter quando ao pensar filosoficamente se viu obrigado à inovação de um formato conceitual plástico, reivindicando neologismos e estruturas linguísticas adversas que só na aparência e no desaviso poderiam ser tomados como ingênuos. Porém, longe da discussão do mérito do estilo, a questão antes se mostra no desafio e na problemática da origem e fundamentos dessa “filosofia clínica”, assim nomeada pelo filósofo brasileiro em suas primeiras publicações na última década do século XX.

O que posso dizer sobre isso? Para mim, não é possível em absoluto remontar uma única resposta à pergunta: “qual é a origem da filosofia clínica?”, ainda que se investigassem pareceres historiográficos e psicológicos[5]. Sua origem não é exclusivamente grega e não se absteve de influências do oriente clássico; não é só de fontes medievais ou de bases predominantemente modernas; nem tão-só contemporânea ou pós; e não se pode ignorar o quão verdadeiro pode ser o fato de que ela surgiu e ressurge, enquanto ideia e método nas profundidades reflexivas de algumas pessoas que souberam pensar extemporaneamente com liberdade epistemológica e intuitiva. No entanto, sem fugir à questão, é tranquilo afirmar que essa é uma resposta “complexa”. Não quero dizer apenas “difícil”, mas sim que é preciso recolocá-la na base de uma reformulação existencial e terapêutica – tal como anunciada por Lúcio Packter – das teorias da complexidade[6]. Fácil é concordar com esse filósofo (quando ele faz questão de repetir, em nossas conversas) que a filosofia clínica hoje está em processo de sistematização. Essa filosofia percorre um caminho metodológico transdisciplinar que se faz no seu próprio transcurso, no seu próprio fazer e se repensar, continuamente. Nela o princípio filosófico da incerteza (o saber que não se sabe) não imobiliza o pensamento, abre horizontes. Sem finalizar, é ponderado concluir que desde o seu imaginário e simbólico ato de inauguração, a sua origem é atual.

Falando de estilo, numa coincidência feliz entre mim e o querido Lúcio (escolho agora seu primeiro nome, por carinho amigo), escrevemos filosofia com poesia. A poesia não falta com a verdade. No espaço da filosofia clínica o diferente não destoa da alteridade. De um jeito expressivo e operador de reformas íntimas, com o raciocínio encarnado de desejos éticos e é que se encontra aqui o presente artigo, entre a gentileza da intuição, a ousadia da originalidade e a busca de fundamentação filosófica. Entretanto, minha alegria de pensar por escrito e a consciência do desafio não se apresentam sozinhas, chamam em auxílio à interpretação de cada leitor para a coautoria dos diálogos e das revisões. Como haveria alguém de acreditar ser possível a fundamentação de uma verdade viva sobre a nossa humanidade sem diálogos refeitos? Não saberia agradecer ao leitor pelo aceite da leitura sem lhe oferecer, dessa forma, palavras concebidas na alma, engravidadas de escuta.

 

II. A descoberta do mundo

Há muitos anos atrás tive um grande susto, um admirável susto filosófico. Sozinho, meditando intimidades e sem conseguir formular um único pensamento feito com palavras, fiquei perplexo com uma frase que minha mãe me dissera, ocasionalmente. Em segundos, algumas das verdades absolutas que eu trazia comigo se explodiram como bolhas de sabão ao tentar segurá-las.

Certa manhã, a pretexto do que não me lembro bem, quando eu tinha nove anos, minha mãe me disse: “não é o cobertor que esquenta você, meu filho… é você que esquenta o cobertor”. Como se sucederam outras vezes, meu mundo conhecido, sólido e previsível, girou na minha cabeça abstrata. Numa revolução copernicana, inverteu-se a direção do entendimento. Achava antes que tudo existia conforme e porque eu pensava assim. Eu, que me sentia tão quentinho por causa da coberta, não imaginava que a verdade vinha da perspectiva. Movido pela escuta, como um pêndulo de sensações oscilantes (aquela sensação de quem se balança na rede e dorme, e já não sabe mais se se está parado ou em movimento antes de abrir os olhos[7]), entendi que se eu quisesse mudar o mundo seria antes necessário tirar a coberta, isto é, “des-cobrir” os enganos dos meus olhos que pesam julgamentos sobre todas as coisas. Muitos anos se passaram para que, somente depois, viesse eu aprender que “pensar” é (quase sempre) “pesar”[8] sobre o mundo as interpretações de quem julga. Difícil imaginar um ser humano capaz de enxergar as coisas desobrigado da perspectiva dos próprios olhos, embora fenômenos profundamente intuitivos possam atravessar[9] e “acontecer” em nós. Por isso a benevolência com os pensamentos na presença dos outros, do que se escuta e do que se fala, a fim de que nosso coração não acumule sobre ninguém as críticas de uma consciência pesada. Julgar com o cuidado que gostaria de ser julgado é um ato inteligente de amor, ato contínuo do filósofo que conhece suas vocações para o exercício da terapia. Essa foi uma das maiores crises da consciência que se produziram na jovem arquitetura do meu olhar, filosofando.

Era como se o mundo em minha volta tivesse muitas evidências de vidro e para cada afirmação categórica dos outros, ao gosto da situação, eu atirasse uma opinião dura e uma oportunidade em cheio. Eu tinha o espírito tempestuoso e por vezes fazia cair uma chuva de perguntas em quem se aproximasse. Havia em minha alma de filósofo pedaços de certezas e emoções inteiras, um imaginativo mosaico de julgamentos organizando meus futuros conceitos sobre a vida. Posso dizer que até hoje sinto em mim aquele gosto menino de ideias inquietas, saudoso de marotagem, com as mãos cheias de filosofia e o pensamento rápido em busca de conhecimentos… como se a cada esquina da realidade eu espreitasse uma nova vidraçaria.

Ainda criança, influenciado pelos romances de Fernando Sabino (1979, 1982), idealizava-me no mundo como personagem fictício, um detetive à procura de pistas em uma casa abandonada, retirando o lençol branco de proteção dos móveis desocupados para melhor investigá-los. A mente fecunda, comecei a suspeitar imaginativamente que todas as coisas estavam cobertas por erros de interpretação, cabendo a mim “des-cobrir” o porquê de tudo. Não sabia, entretanto, que muitas vezes até mesmo quando eu me julgava “coberto de razão”, permanecia tão iludido quanto os que não cobriam de lógica os seus argumentos. Insuspeito, não sabia que o mundo transborda o julgamento racional. É que eu pensava como quem se apaixona, de repente, com um amor inadequado, inexperiente, arrogante e impulsivo. Apenas sentia (pelo verbo gostar) uma intuição emotiva, mal traduzida ou expressa, de conhecer pelo entusiasmo dos desejos. Dava o nome de “meus solilóquios” ao processo íntimo de tensão e alegria que estimulavam minha alma a querer saber tudo, sempre. Frequentemente eu me perguntava a respeito das pessoas, das minhas certezas, sobre tudo o que se escondia além das aparências e sobre como funciona o raciocínio. Sem dificuldades, um dia entendi que eu era filósofo.

E foi assim que iniciei minhas leituras e investigações sobre o amor, termo que mais tarde descobri muitos chamarem de ética. Nunca me interessou diretamente os estudos sobre a moral, esse conjunto de regras práticas estabelecidas temporariamente pelas convenções. Importava-me não apenas os valores que pareciam ser certos ou errados, mas, sobretudo, ambicionava estudar os critérios desse julgamento decisório. Demorei muito tempo, persisto hoje, para desiludir o coração da infantilidade acadêmica de acreditar que seremos éticos por havermos teorizado – ainda que corretamente –, argumentando vaidades sem íntima convicção, como se o ato de refletir não exigisse coerência e a vida não determinasse consequências.

Ninguém se torna um escritor só porque leu muito, nem filósofo porque adquiriu erudição. Quando um pensador usa palavras cujo significado está morto dentro dele a distância entre intenção e gesto transforma inteligência em sofrimento, faz do maior conhecimento sua maior decepção. Quem desconhece a sabedoria de perder as disputas do orgulho, a generosidade da outra face, tarda em sentir nas vitórias o gosto inevitável de cada vergonha.

 

III. O mundo da filosofia clínica

Para o meu espanto, na universidade, uma década depois, soube que o meu antigo “problema do cobertor” era um autêntico problema filosófico já discutido pelo realismo ontológico de grandes filósofos como Platão e Aristóteles, quando afirmaram que a realidade existe independentemente da consciência. E que isso era, ao mesmo tempo, tão convincente quanto as respostas de pensadores como Kant e Husserl, quando disseram que o conhecimento é dependente dos critérios e limites da percepção da consciência que julga. Um conflito irremovível da história do pensamento, que se renova de tempos em tempos. Evidência – interessa-me isso – de que a filosofia está mais próxima das pessoas do que elas imaginam.

Ao entrar na faculdade de filosofia, assim como nos cursos que depois se seguiram, encontrei amigos notáveis, mestres do caminho, e me enriqueci com a grandeza dos seus exemplos pessoais. De cedo, eu levava comigo a imensa busca do significado do que era eu existir, sem imaginar a vastidão de poesias e conhecimentos terapêuticos que o espírito de Lúcio Packter me presentearia no futuro, antecipando-me. Dediquei-me aos filósofos e pensadores de preferência, às suas questões e métodos, desejando ser fiel ao contexto e aos conflitos da época em que suas obras foram escritas, para quem sabe entender neles a marca das suas inteligências e sentir com eles a profundidade de suas inquietações. O exame das temáticas da subjetividade, recobertas e sobrepostas de objetividade, sempre me interessou.

Mas, naquele tempo eu examinava a realidade especulativamente apenas, ainda não sabia ouvir o indivíduo concreto “em situação”[10]. A presença do outro, subtendida, chegava-me em grande parte como uma representação abstrata, elaborada pelos sistemas de juízos e de valores que eu acumulara em minhas leituras. Devidamente incapaz da alteridade de respeitar os insondáveis mistérios que faz de cada outro um profundo “não-eu diante de mim”, iludia-me em acreditar nas tipologias universais e abstratas da natureza humana. Não sabia à raiz o que significava ser verdadeiramente único. Era-me mais fácil reduzir o mundo ao alcance das minhas teorias de preferência. Minha formação universitária e iluminista, por descuido meu, aceitou em parte o exemplo e a tradição intelectual mais comum entre os acadêmicos, que se acreditavam intelectuais pela erudição, fortes pelo debate e distintos pela superioridade. Não havia amor maduro o suficiente para uma escuta muito além de mim mesmo, apesar da boa vontade.

Foi estudando a teoria da filosofia clínica, com o professor Packter, que aos poucos aprendi muito sobre as minhas próprias limitações psicológicas e existenciais. Em nenhum momento ele, “possuído de verdades”, fez com que eu me confrontasse com a evidência dos meus próprios erros, apontando meus absurdos, denunciando minhas faltas pela exortação da culpa. Ao contrário, manteve um alto cuidado comigo, ajudou-me a transformar tudo o que estava inaproveitável na minha consciência em adubo de aprendizagens, a fim de que o movimento da vida, no tempo certo, fizesse de cada novo erro mais uma lição de autoconhecimento. Com ternura e método, Lúcio soube reunir dentro de mim o aluno e o mestre. Como bom mediador, apresentou diante de mim o meu melhor. Seguir o trajeto era incumbência só minha.

De fato, ainda não me apercebera nos tempos de academia que filosofar é um ato de gentileza com as verdades subjetivas dos outros. Muitas vezes ele me desconcertava com uma poderosa simplicidade. Pequenas perguntas sobre dramas existenciais facilmente encontrados na prática clínica de consultório, onde o filósofo deve cumprir sua missão de orientar a vida das pessoas, quando solicitado. Não sabia eu que, para estudar filosofia, autenticidade era algo tão imprescindível quanto belo.

Certa feita, numa das primeiras aulas do professor, dissertava eu sobre o pensamento platônico… quando ele, amigo atento, interveio com uma pergunta. Ele simplesmente me fazia perguntas como esta:

“Will, querido… a partir da sua leitura, o que Platão diria hoje para uma pessoa que acabou de perder o emprego, está sem dinheiro, tem esposa e filhos para alimentar, dívidas com a escola e com o aluguel… a fim de que ele não caia em desespero ou pense em suicídio?”

Eu sabia o que Platão afirmava em seus livros, conhecia a base da sua doutrina, mas ainda não sabia pensar platonicamente nossos problemas cotidianos sofridos no coração dos homens. Não aprendera a pensar à maneira de Platão. Nesse dia, vencido o susto e aceito o desafio, pus-me de novo ao trabalho de especular. Com algum esforço, logo eu estava pronto para responder ao meu professor algumas hipóteses teoricamente satisfatórias, ao menos defensáveis intelectualmente, orgulhoso de mim mesmo. Refeito, já preparado para o debate, de volta aos ânimos da sala de aula, eis que meu sábio mestre novamente me questionou, mais ou menos nessas palavras:

“Meu querido, você está me dando uma resposta acadêmica, uma explicação puramente teórica. A questão é outra e não é para mim, mas para aquele homem desempregado, lembra-se? Tente usar a linguagem dele, que não é filósofo, que não sabe mais o que fazer da vida, que sequer é compreendido pela própria esposa, que também sofre… O que você faria enquanto filósofo para ajudá-lo caso ele lhe aparecesse na sua frente pedindo orientação? Quero dizer, como você faria isso a partir do que Platão mostrou ser possível orientar as pessoas por meio da filosofia? E não se esqueça de ser afetuoso em sua resposta, perante a dor dos outros”.

Em uma espécie de autorrepreensão eu me ouvia, irônico e envergonhado, reformulando aquelas perguntas que ele carinhosamente fazia para mim. Eu me dizia mentalmente frases como: “Will, com quantas tábuas abstratas, compostas só de pensamento, você construiria um barco concreto de madeira para não se afogar em águas profundas?” ou “Will Goya, você sabe apagar o incêndio de uma casa apenas com o sopro da sua retórica?”. Como um construtor de barcos de madeira saberia consertá-los com o material adequado, semelhantemente Lúcio Packter me pedia para saber reconstruir vidas, ser farol no mar das escolhas difíceis para aqueles que naufragaram na existência; guiando-os pela bússola da estrutura de pensamento deles próprios. Ele me ensinou que só há ética quando se escuta no próprio coração as dores e dificuldades de quem precisa de ajuda, de quem se afastou demasiadamente das forças que o sustentava.

Desde os primeiros sustos epistêmicos da infância, foi com o meu querido professor que realmente aprendi sobre a ética da escuta filosófica, amotinando os pensamentos na consciência e introduzindo no espírito minhas novas revoluções copernicanas. Antes eu me afastara de mim justamente quando me afastara dos outros. Eis que, pela influência da filosofia clínica, não era mais o meu Sol que girava em torno da minha pequena Terra. Quanto mais autêntico e integrado eu me tornava, mais pontes de relação se erguiam em mim sobre o mundo em minha volta. Sentia-me uma individualidade não isolada, uma pessoa conexa de pluralidades afins, constitutivo pela diversidade de um infinito sistema vivo. Uma pessoa cada vez mais redefinida pelos encontros. Reacomodando antigas verdades, minhas convicções em destemor foram abertas para o diálogo com a vida. Onde em mim só havia muros, foram postas janelas.

Com Lúcio Packter fui aluno e partilhante, condições necessárias para depois me tornar filósofo clínico. Com ele revivi algumas das minhas certezas inatas, desejando aprender mais sobre a arte de transpor os limites existenciais da separação entre a crença de mim e a presença do próximo. Aproximação respeitosa, com intimidade. Estrada de compreensão e cuidados que só pode ser trilhada se o filósofo for convidado na condição de hóspede pelo seu partilhante da terapia à casa subjetiva do seu próprio ser[11] – abertura para trânsitos, reciprocidades ou trocas.

Depois, tornei-me especialista em filosofia clínica e logo me inscrevi na escola prática da terapia em consultório, desejoso eu de ser pelas mãos da vida, cada vez mais, um afago e uma força para os desalentados. Tudo isso me levou a experimentar profundidades até então desconhecidas em mim quanto ao significado etimológico da palavra “filósofo”, ao princípio original que também define o filósofo clínico como um ser ético: “aquele que ama…”[12]. Maior o conhecimento, maior o compromisso. Em linguagem de poesia: “mais que desejo, conhecer é colocar amor no desconhecido, e aventurar-se” (Goya, 2011: 122).

Hoje, ainda que eu próprio me esforce para que as minhas limitações pessoais não me impeçam de trabalhar e servir aos meus partilhantes com carinho e dedicação[13], muitas e muitas vezes a sensação é a de que não soube me tornar melhor para os outros. Nesses momentos em que me vejo pelos espelhos do fracasso, fosse minha alma desenhada numa circunferência, eu buscaria medir meu tamanho só olhando para o interior, atraído pelo poderoso eixo rotativo da gravidade dos erros. Mas, quando exercito espiritualmente a clínica filosófica com cada novo partilhante, tenho a alegria de sair de “mim mesmo” e me tornar “eu próprio”[14]. Sempre que vislumbro nas diferenças a presença dos outros, sinto-me arrebatado por uma experiência oceânica de gratidão, pois vejo o mundo se tornar infinito quando mensurado pelo tamanho de tudo o que não sou eu.

Razão íntima dessas experiências, o que eu vivenciei como professor e filósofo clínico – autêntico, apesar de mim – permitiu-me estabelecer um meio próprio de autoconhecimento: trabalhar por amor aos outros e conseguir de fato ajudá-los faz eu me transcender de mim, esquecendo-me sem me negar. Há nisso tanta alegria e gratidão pelo presente de eu ser menos egoísta, que sinto brotar na alma, mais leve, uma disposição solícita de generosidades. Então, olhando para fora de mim vejo o tamanho de quem somos. Não é por menos que me lembro de sempre saborear na memória uma frase atribuída ao filósofo grego Pitágoras, cantada no coração dos meus pensamentos: “o limitado dá forma ao ilimitado”[15]. Por causa da filosofia clínica, aprendi a ver o infinito de cada um. Como um céu estrelado, isso é de todo fascinante!

 

IV. O mapa-múndi dos outros

Percorrer as aventuras do pensamento em busca dos tesouros da verdade, a fim de não se perder, exige do navegador um mapa da realidade, do tempo e do lugar investigado, cujas coordenadas históricas apontam o tamanho do mundo: ele nos antecede e nos ultrapassa permanentemente, é sempre maior do que todos os cálculos da intenção. Tal mapa é o limite do conhecimento que traz segurança na rota ao desconhecido, o mundo como vontade e representação segundo a perspectiva de quem o vive (Schopenhauer, 2005). Cônscio de que o mapa não pode jamais ser confundido com o próprio território, de que nenhum saber pode substituir a originalidade do fenômeno pelo conceito intelectual que se fez dele, o filósofo clínico, pela escuta analítica do seu trabalho afetivo, não se deixa reduzir a uma representação objetiva completamente determinada pelo movimento que o próprio método engendra. Necessário e valioso, se o conhecimento metodológico sobre o partilhante não afirma a sua essência, todavia diz muito ao filósofo em benefício da terapia, revelando os conectivos da inautenticidade tanto quanto os possíveis autênticos caminhos de construção do ser. Não há teoria do conhecimento que substitua a própria vivência intuitiva de um encontro, entre dois. A ousadia de falar sobre a vida de outrem, com conhecimentos verificados e refletidos, forma e conteúdo, deve ser tão sólida e tão ética, a toda prova, que permita ao filósofo clínico diante de si mesmo ter convicção suficiente para olhar face a face o seu partilhante da terapia e poder lhe dizer: “dentro dos meus limites, eu o conheço profundamente e sei como ajudá-lo”. Ousadia sem arrogância, conhecimento sem dogmas, aprendizagem com os erros. Motivo suficiente para que na filosofia clínica a sensibilidade ética do amor ao próximo seja sempre o primeiro bastião de todo julgamento, uma preocupação e uma ênfase constantemente relembradas.

Conhecer uma pessoa é diferente de saber a sua biografia, de se informar dos fatos que se lhe sucederam e, muito menos, de prejulgá-la com teorias a priori. Antes, é tentar se colocar objetivamente na sua perspectiva singular da existência, conhecendo sua historicidade por ela mesma perspectivada, fenomenologicamente. É reconhecer todo o conjunto de percepções significativas e marcantes que anuncia e afirma um modo identitário padrão, aberto às surpresas, de se ser único no mundo. Faz-se necessário uma investigação metodológica adequada para avaliar os traços subjetivos mais importantes de uma pessoa, descritos e situados no contexto e nas relações do mundo em que ela se encontra. Predicativos do sujeito com força bastante para que ele se reconheça continuamente, apesar das mudanças, em algum sentido totalizador na intuição de si mesmo (algo como se dissesse em palavras: “eu sou assim…”). Caracteres reveladores das suas tendências inerciais – enquanto forem atuantes – em manter viva a sua identidade. Na possibilidade clínica de se conhecer tais propriedades existenciais de um ser humano, o filósofo clínico terá condições analíticas de abstrair dele as transformações superficiais e elaborar no plano da generalidade teórica imprescindível um conhecimento objetivo subsistente.

A essa estrutura psíquica e existencial do pensamento, sua malha intelectiva, que Lúcio Packter chamou de “estrutura de pensamento”, abreviada por “EP”. “Pensamento”, aqui entendido muito além da ideia tradicional de abstração, enquanto qualquer manifestação ou modo de ser da consciência, seja via sensações corporais, raciocínios, expressividades da linguagem, valores, sentimentos e infinitas outras categorias de existência. A EP de um partilhante, no processo filosófico clínico, não se revela à distância pelo simples querer de um observador curioso. É apreendida e descoberta pelo rigor epistêmico, por métodos práticos apropriados e por uma escuta filosoficamente atenta, ouvindo na alma com a inteligência de um pensar sensível. Tal rigor dá ao filósofo uma possibilidade de investigação empírica e de formulação epistemológica capazes de lhe assegurar, por aproximação, um conhecimento arquitetural da subjetividade singular do partilhante.

Nos diferentes espaços de liberdade, cada um possui, constrói, extingue, reinventa… seu jeito próprio de ser. Somos todos seres de composição viva, mista, tecidos juntos com o mundo, para além de quaisquer conclusões definitivas. Por descrição e definição, o que se sabe de cada um é “enquanto”.

 

V. Os mundos paralelos e suas diferentes moradas existenciais

Desde que se instaurou na modernidade a crença da individualidade privada, observa-se um padrão ocidental de valores e modos de ser no qual a grande maioria das pessoas, carrega e alimenta, fortalece e defende com grande e sofrido apego a exclusividade dos limites subjetivos da sua experiência psicológica. Demarcou-se imaginariamente uma separação entre a linha conceitual interna, que se arbitrou chamar de “eu mesmo”, e o estranho lado de fora da consciência, região secundária e suspeita de tudo o que se revela e é vivido como um inespecífico “isto não sou eu”. Todavia, essa concepção do intelecto como uma fronteira individual e exclusiva não é um fenômeno natural, caráter de uma suposta essência do ser humano. É historicamente típico da era moderna, cujos valores e desejos foram grandemente determinados pelos mecanismos do utilitarismo, ao invés de emanarem da coletividade, tal como era antes. O que em nossa época tradicionalmente entendemos por “consciência individual” muito se pode vincular ao modo capitalista e à educação da liberdade de escolha direcionados para a posse descartável dos objetos do desejo seguida de autoafirmação identitária. Movimento cultural que suscitou no indivíduo do senso comum a crença de que a sociedade precisa lhe transferir o poder de fixar como valor natural as propriedades como “suas” e as posses como “exclusivas”. Essa hiperinflação valorativa do conceito fragmentado de “eu” enraizou culturalmente o suposto de que ser indivíduo é estar separado do mundo com privilégios de autoria e superioridade de mando. Por citar, na opinião de expoentes da antropologia filosófica e psicanalítica, como Erich Fromm (1983), essa alienação histórica da modernidade gerou valores e frustrações inevitáveis, tais como o esvaziamento do sentido de viver e a indiferença hostil à coletividade. Tendo como expoentes desse paradigma racionalista-mecanicista pensadores como Descartes, Bacon e Newton, o conceito do “individualismo” produziu e foi produzido desde o séc. XVII por uma ideologia política que se caracterizou pela força dos extremos e dos excessos, afirmando ser do indivíduo a única competência para remodelar as coisas segundo a sua vontade e poder.

Apesar das vantagens e acréscimos advindos com a cientificidade e o tecnicismo modernos, é lamentável a penúria espiritual hoje tão manifesta e com tanta frequência nos consultórios de terapia. Queixas coletivas de um sentimento generalizado de impotência, guardando entre os sintomas mais comuns de nossa época os traços da inautenticidade do sujeito alienado de si mesmo: os acúmulos de prazer e os sofrimentos desnecessários buscando compensação para o fato de já não mais saberem o que fazer da vida quando se virem forçados a destronar o manto das ilusões. Temor antecipado e projetado nas circunstâncias do mundo em que se encontra, como se a priori a ideia da morte descompensasse a força da vida. Os heróis e os santos das eras antigas testemunham que o medo da morte nem sempre foi um sintoma de fragilidade. Na lembrança dos contos infantis de Andersen (1997), quem se acostumou nas vestes do rei dificilmente suporta a leveza da própria pele na frente dos outros, quando a verdade desnuda a ilusão.

Antes da cultura moderna do individualismo, é claro, existiram outras formas de manifestação da consciência ao longo dos tempos. Grosso modo, houve duas grandes configurações de valor, do ponto de vista antropológico (Dumont, 1985) na história das civilizações ocidentais: a do mundo pré-moderno, caracterizado por uma estruturação holista, e a do mundo moderno, estabelecido via um perspectivismo individual. Graças ao distanciamento histórico que a nossa época presencia, é-nos possível constatar fatos e consequências com maior objetividade, emitindo, por exemplo, julgamentos sobre vantagens e desvantagens relativas.

Na ideologia holista houve uma concepção estruturalista de sistemas organizacionais, na qual o que se considerava importante brotava das qualidades e dos elementos de uma determinada composição, valorizando-se a totalidade social e se negligenciando ou subordinando o indivíduo nela inserida. Trata-se do modo particular das sociedades hierárquicas e gregárias em tempos pré-industriais, onde a ordem resultava da predominância do sentido de valor do “todo” sobre as partes, sobre “tudo” imbricado, reconhecido e até espontaneamente prescrito e orientado pela consciência intrínseca da totalidade – princípio inteiro nas múltiplas variações da estrutura do real. Se os processos holísticos de autonomia se faziam pela coparticipação das forças humanas (a exemplo da coesão política da razão ateniense exercida na ágora), capazes de soerguer cada membro pelas vitórias do conjunto; por outro lado, os vínculos simbióticos de alienação coletiva poderiam rebaixar as energias vitais de civilizações inteiras aos limites da própria desumanização (como as guerras fratricidas das cruzadas cristãs).

No segundo paradigma, desenvolvido no centro da visão fenomenológica existencial pós Descartes, o valor se vinculou ao indivíduo, consciência intransferível de escolhas próprias que se autodefine com independência ou em detrimento da totalidade do mundo. Demarcação subjetiva e discriminatória da sensação e desejo do “eu próprio” na presença de outrem. A ideologia individualista fez parecer natural cada pessoa ter um eixo de volição subjetiva, uma crença original que principiaria e fundaria a realidade; uma espécie de núcleo evidente de autoria da consciência do próprio “eu” que nasceria intuitivamente do íntimo e se espargeria do centro à periferia de suas percepções do mundo. Nos equivalentes comparativos dessa ideologia com a do holismo, não haveria mais uma sociedade hierárquica, e sim igualitária, já que o indivíduo, valor supremo, não poderia mais ser submisso a nenhuma outra ordem do que a ele próprio. O registro econômico político desse princípio de igualdade tomou a forma do liberalismo, valor cardinal das sociedades modernas.

Apesar de o individualismo ter prevalecido em níveis extremados na nossa época, variações e mesclas desses dois modelos axiológicos existem hoje na EP de algumas pessoas e de pequenos grupos – constatação fácil às pesquisas antropológicas e à prática clínica. Duas ideologias de valor mutuamente exclusivas e contraditórias em seus princípios, e uma valiosa questão existencial: como um filósofo clínico orientaria um partilhante que trouxesse no coração conflitos axiológicos tão díspares daqueles vigentes no paradigma social da sua época (um executivo, com família e compromissos administrativos inadiáveis… que, no entanto, gostaria de ser totalmente hippie)? Teria essa pessoa que fazer um deslocamento cultural (abandonar tudo e se mudar para uma comunidade rural) ou tentar uma inversão de valores (tornar-se um anarquista e buscar depor o sistema capitalista)?

Assumindo essas questões axiológicas apenas como exemplos das muitas que já surgiram no meu consultório, várias de outras naturezas filosóficas, é importante esclarecer que a filosofia clínica não se restringe aos métodos e tratamentos das dinâmicas da individualidade. Quando uma EP não encontra valores existenciais capazes de conectá-la e sustentá-la nas relações com o mundo no qual está inserida, estaria ela aprisionada exclusivamente aos encaminhamentos fenomenológicos da consciência individual, tais como: continuar se adaptando, rebelar-se ou sucumbir seus sonhos mais sagrados? Pelos princípios clínicos da filosofia de Packter, é bem verdade que cada EP é única, com suas próprias respostas individualizadas, segundo a historicidade de cada partilhante… no entanto, outra pergunta fundamental pode e deve ser feita na terapia filosófica: como transcender a concretude do mundo, seus fortes vínculos de lugar e época – sem negá-lo e sem dele se alienar? A filosofia clínica tem seu próprio modo de responder a isso, cujas explicações e profundidades infelizmente não cabem no propósito deste artigo. Contudo, vale dizer que, não raro, quando não se pode mudar o mundo, existencialmente (não psicologicamente apenas) deve-se mudar de mundo. Implicações filosóficas que não recusam algumas aproximações com a metafísica, campo legítimo de diálogos.

Atravessando o bojo das principais correntes históricas do pensamento filosófico, sem mágicas, místicas ou aventuras opinativas, Packter criou e ainda hoje desenvolve, em seus estudos de “matemática simbólica” (Sendtko, 2013), um sistema filosófico de coordenadas teóricas e práticas para a localização da pessoa, na sua intencionalidade subjetiva, em relação às diferentes estruturas de realidade. Ele investiga os movimentos existenciais de habitação e trânsito entre as Estruturas de Pensamento individuais e as Estruturas de Pensamento intersistêmicas, estas por ele chamadas de “patamares” ou “padrões autogênicos estruturais”.

Atualmente, outros pensadores filósofos clínicos também buscam desenvolver pesquisas e trabalhos de variadas temáticas e abordagens sobre essa terapia filosófica instaurada no eixo original do pensamento complexo. Esforços multidisciplinares que hoje se somam a partir de profissionais das mais diferentes áreas em conversação com a filosofia clínica, abrindo espaços para terapias de grupos, interseções entre instituições, culturas, espiritualidade e outros gêneros, incluindo temáticas transversais como a crise do humanismo e nascimento da condição pós-humana (Aiub, 2015 e Silva, 2015).

A compreensão de Packter, porque não fragmenta, nem privilegia o ser humano como o mais elevado marcador de importância dos fenômenos percebidos, toma a vida como uma totalidade irredutível em seus infinitos sistemas auto-organizacionais da realidade, imanentes ou transcendentes, coexistindo-se dimensões paralelas, redes vivas de sistemas não lineares entrecruzadas pelas suas próprias leis de afinidades, constituição e valores. Para além dos princípios fenomenológicos da alteridade, jamais aquém, ele abre espaços e procedimentos intuitivos de conversação íntima com o noumênico[16], procurando exercitar métodos de aprendizagem não restritos às regras sintáticas da linguagem. Por efeito sutil e profundo desse imenso respeito à interconexidade de comunicação entre todos os seres em variados planos é que o desempenho filosófico da escuta do outro – mas também do inefável por ele e ou através dele – é de todo inclassificável em quaisquer rótulos de fixação da identidade.

 

VI. Um mundo de preconceitos

Sem a pretensão de instaurar um novo modelo da mente – efeito entrelaçado e inenarrável da trama ontológica das subjetividades – a filosofia de Packter, em desacordo com os dogmatismos travestidos de cientificidade humanista, recusa-se à tarefa de explicar as causas primeiras ou últimas do ser com novas teorias universalistas. Razão de tudo isso, a escuta na filosofia clínica não privilegia a detecção e tratamento pelo viés da área da saúde mental. Não pretende qualquer ideia de “cura” segundo o conceito taxionômico de doença, apresentado nos códigos médicos ou nos indicadores psicológicos sobre os transtornos físicos e psíquicos – embora possa haver coincidências na atuação filosófico clínica. Não é raro que os paradigmas científicos dominantes de uma geração tenham a validade histórica e relativa dos interesses políticos ideológicos e das tecnologias que os sustentam. Logo, não faz sentido argumentar que o filósofo erra por não possuir conhecimentos científicos necessários para a diagnose de transtornos mentais, como já ouvi muito. Sobretudo porque uma das maiores competências críticas da filosofia está em desfazer falsos problemas e, com eles, a prática equivocada de suas implicações. O crescente poder das tecnologias médicas e farmacológicas no século XX provocou uma explosão de novas classificações diagnósticas às expensas de um lamentável processo de patologização do normal.

Modelos sociológicos e tipos psicológicos ajudam na compreensão geral e são absolutamente necessários como um ponto de partida, amparados na pesquisa séria dos que se dedicam à ciência e à humanidade. Todavia, se a busca for pelo conhecimento do singular e pelo cuidado terapêutico insubstituível para com a história de uma pessoa específica, não será justo tratá-la genericamente pelas estatísticas. Como dito, os termos e conceitos da psicopatologia não estão isentos dos interesses político-econômicos, dos mecanismos de controle e ajustamento aos estados funcionais de normalidade.

Se o rótulo de “anormal” pesa em difíceis e sofridas consequências, às vezes de cárcere e de exclusão social, por que haveria de ser melhor ou aceitável rotular alguém de “normal”, buscando-se os benefícios imediatos no enquadramento utilitário da sociedade e na obediência ao status quo? Essa é uma das razões pela qual a filosofia clínica alivia o peso dos equívocos perversos de significado nos termos da “psicopatologia” e do seu contraponto, a “normalidade”. Muitos filósofos[17] já se debruçaram exaustivamente sobre o assunto que, apesar do nobre esforço, ainda se arrasta pelos corredores institucionais a vergonha do nosso tempo.

Por outro lado, muito distante das tipologias psicológicas ou psiquiátricas, confesso que sempre me fizeram rir três figuras caricaturais do ser humano no mundo moderno: a “criança”, o “velho” e o “louco inofensivo”. As irreverências de atitude, a excessiva sinceridade, o gosto fora de moda, o erotismo deseducado ou as desobediências por teimosia, via de regra parecem bem mais aceitáveis socialmente nesses três esboços. Afinal, como argumentar com quem não entende por ser muito novo? Com quem já não tem medo das reações por estar à morte e ainda se recusa a se modificar? ₢om quem não se importa com o julgamento externo, porque está alheio a tudo em seu próprio mundo, isento de acusações?

Confesso. Sentia inveja dessas figuras… até que um dia me dei conta de que pessoalmente já fora agraciado com a dádiva dos “loucos inofensivos”, por ser “filósofo” – segundo o imaginário que o senso comum guarda do intelectual profundamente abstrato. Quantas vezes já recebi perdão social por algumas opiniões e comportamentos que tive (nada demais, para mim)!? Ouvi frases exclamativas do tipo: “ah… então você é um filósofo? Isso explica tudo! Os filósofos vivem mesmo no mundo da lua…”. Além disso, devo somar às vantagens risíveis o fato de eu também ser um terapeuta. Afinal, existem muitos que projetam suas culpas nas supostas autoridades da clínica, com reverência e submissão voluntária, e ainda as temem pelo fantástico poder de telepatia ou de superinteligência a revelarem seus segredos mais íntimos. Admiração e medo.

A graça não termina por aí, já que as vantagens terapêuticas do riso se estendem entre colegas da filosofia clínica, quando juntos achamos estranho e irreverente a extrema simplicidade das vestes do querido professor Packter, humilíssimo! – que se traja sem nenhuma sofisticação ou vaidade em quaisquer ambientes, qual sempre estivesse em casa com os amigos. Se para uns a loucura é estigma do isolamento, para outros é a liberdade dos excluídos. Uma condenação antecipada, e já perdoada, pode ser um caminho mais rápido para a reconciliação. Não se pode humilhar a alma de quem já tem o coração humilde. Seja como for, no proveito da clínica filosófica, é importante saber escutar as diferenças nas adversidades. Há grande sabedoria no bom humor, para todos. De tudo se tiram riquezas em favor da vida.

 

VII. Considerações de arremate a uma jornada sem fim

Fosse a vida didática e a palavra sempre aceita, bastaria explicar todo o pensamento de Packter com bons argumentos, exemplificar o suficiente, dirimir dúvidas para que muitos problemas fossem definitivamente resolvidos. É pouco provável que a maioria realmente funcione assim, tão isenta de ambivalências e fluxos de contradição. Há quem aprenda somente quando acontece uma relação de confiança e amor emanados por quem ensina. Também há quem recuse professores ou amigos e decida aprender tudo sozinho; quem prefira livros à pessoas; quem precise ver para crer ou o inverso; e muito mais.

Como aluno aprendi a ser professor, como partilhante a ser filósofo clínico. Com Lúcio Packter descobri que, sejam alunos ou partilhantes, amigos ou desconhecidos, podemos lhes dar o nosso amor, mas não as nossas experiências mais autênticas. Verdades não são apenas informações que se possam repassar, são também percepções da consciência, que se exercitam. Nenhuma teoria pode antecipar ou substituir a escuta das intimidades de outro coração, especialmente quando sofre. Quem não souber a escuta, que saiba o silêncio.

Acredito que a escolha de se tornar um filósofo clínico, quando sincera, aumenta e muito a sensibilidade e o balizamento da consciência, afetando na alma o peso ou a leveza de carregar consigo a própria estrutura de pensamento. Sem falsas tentativas, tudo é bem mais fácil para quem aprendeu a não se trair. Porque nem sempre escolhemos ser fiéis ao mais íntimo de nós mesmos, forçando o riso sem a alegria… chega o tempo da saudade de voltarmos a ser quem de fato somos e quem de novo gostaríamos ser, reconcilio único pelas estradas e tendências no interior de cada um. Quando não se pode ensinar o que se sabe, cabe ao menos evitar na relação os monólogos da tirania e as palavras de martelo; recusar-se a vestir as máscaras da bondade, da paciência controlada, fingindo as aparências de um terapeuta equilibrado. De fato, a filosofia clínica não é uma solução para tudo, nem deveria ser apresentada como a melhor das opções àqueles que a rejeitam. Não é para todos.

A filosofia clínica é tão só uma de outras várias tantas lições de amor, que deve ser refeita diariamente. Eis a primeira missão do filósofo que ousou ser terapeuta: diante da própria historicidade deve se tornar outro, melhor, para outrem. A jornada existencial da terapia é uma conversa entre dois amigos que percorrem juntos a partilha da transformação um do outro. Paradoxo do esforço de grandes mudanças para nos tornarmos mais nós mesmos. Quando o filósofo clínico se oferta para o diálogo e o convite é aceito, o mundo inteiro redefine a sua grandeza, erguida a ponte do autoconhecimento entre dois.

Pessoalmente, depois de muitos estudos, aos quarenta e cinco anos de idade, teimo ainda em extrair novas lições de escuta a partir do susto filosófico que tive aos nove e das longas conversações com o meu grande mestre Lúcio Packter, cuja amizade e convívio se prolongam há dezoito anos. Para escrever esse artigo, juntei nas memórias do coração os meus erros e acertos, as lições existenciais que hoje somam quase dezessete anos praticando a profissão de filósofo clínico, e não consigo agora pensar em outra frase que não aquela atribuída a Sócrates, para me traduzir tão bem sobre tudo o que aprendi: “tudo que eu sei é que eu não sei nada…”[18]. Estou ciente de que grandes verdades já me foram ensinadas pela vida, esperando apenas o meu tempo de maturidade para enfim saber ouvi-las.

 

REFERÊNCIAS

AIUB, M.; BROENS, M.; GONZALEZ, M. E. Q. Filosofia da Mente, ciência cognitiva e o pós-humano: para onde vamos? São Paulo: FiloCzar, 2015.

AGUILAR, Cristiane Balestrieiro dos Santos. Operações Enunciativas e Valores Referenciais. Estudo da Marca apesar de. Araraquara, SP, 2007, p. 113. Em: <http://www.livrosgratis.com.br/download_livro_48892/operacoes_enunciativas_e_valores_referenciais-_estudo_da_marca_apesar_de>. Acesso em: 10 de julho de 2015. [Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara].

ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do imperador. Ilustrado por Ângela Barret, tradução de Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 1997.

CANGUILHEM, Georg. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

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DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

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___ Fazer Café, Amor e Filosofia: a arte de escrever filosofia em poemas. Goiânia: Ed. PUC-GO / Kelps, 2011.

HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Prefácio de Arnold I. Davidson e tradução de Flávio Fontenelle Loque e de Loraine Oliveira, São Paulo: ed. É Realizações, 2014.

___ O que é a filosofia antiga? Tradução Dion Davi Macedo. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

___ Complexidade e Transdisciplinaridade – A Reforma da Universidade e do Ensino Fundamental. Natal: UFRN, 1999.

LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1988.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2001.

PACKTER, Lúcio. Cadernos: especialização em filosofia clínica (de A até R). Porto Alegre: Instituto Packter, [(s.d.)]. [Notebooks, (sem data)];

___ Entrevista com o Dr. Lúcio Packter sobre a Filosofia Clínica. Revista Partilhas – Instituto Mineiro de Filosofia Clínica, Ano II, n. 2, nov. 2015.

PALÁCIOS, Gonzalo Armijos. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio: Editora UFG. 1997.

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___ O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1982.

SENDTKO, Gilberto (Org.). Caderno de Matemática Simbólica I. Chapecó, ed. ANFIC (Associação Nacional de Filósofos Clínico). Organização de Gilberto Sendtko e revisado por Rosemiro Sefstrom, 13 de julho de 2013.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução Jair Barboza. São Paulo: Ed Unesp, 2005.

SILVA, Ronaldo Miguel da. Pós-humano: crise ou reconstrução da identidade humana? Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015.

___ Raízes gregas da Filosofia Clínica. Org. Ronaldo Miguel da Silva. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016. [ISBN 978-85-7061-828-3]

ZATTI, Vicente. Autonomia e Educação em Immanuel Kant e Paulo Freire. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

[1] Obra lançada no Seminário de Especialização “Sócrates, Platão e Aristóteles, algumas raízes gregas da Filosofia Clínica”, em Atenas, Grécia, de 27 de setembro a 09 de outubro de 2016, promovido pelo Instituto Packter em parceria com a Universidade Caxias do Sul, o Studium Eclesiástico Dom Aquino Corrêa e a Faculdade Católica de Anápolis.

[2] “Vice-conceito: substituição de termos conhecidos por outros de significações aproximadas num mesmo dado de semiose, permitindo que um seja escolhido ou trocado por outro em contextos específicos, sem alterar o sentido geral da sentença como um todo (uso de metáforas, analogias com filmes ou situações, sinonímias etc.). Muda-se a forma, preservando o significado. Por vezes, isso facilita ao partilhante falar das suas dores, sem usar diretamente as palavras que mais lhe causam sofrimento, minorando o desconforto. Porém, sua eficácia é proporcional ao conhecimento dos elementos linguísticos da malha intelectiva do partilhante” (Goya, 2010: 111).

[3] “O discurso sobre a filosofia não é a filosofia. Pólemon, um dos escolarcas da antiga Academia, dizia: ‘O que se diria de um músico que se contentasse em ler os manuais de música e não tocasse jamais? Muitos filósofos são admirados por seus silogismos, mas se contradizem em suas vidas’ (Diógenes Laércio, IV, 18). E cinco séculos mais tarde Epiteto lhe faz eco (III, 21, 4-6): ‘O carpinteiro não vem vos dizer: ‘Escutai-me argumentar sobre a arte dos carpinteiros’, mas faz seu contrato para uma casa e a constrói […]. Faze o mesmo tu também” (Hadot, 2014: 264-5).

[4] “Todas as escolas helenísticas parecem, com efeito, defini-la [a sabedoria] quase nos mesmos termos e, antes de tudo, como um estado de perfeita tranquilidade da alma. Nessa perspectiva, a filosofia aparece como uma terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana (…). Quer reivindiquem ou não a herança socrática, todas as filosofias helenísticas admitem, com Sócrates, que os homens estão submersos na miséria, na angústia e no mal, porquanto estão na ignorância: o mal não está nas coisas, mas nos juízos de valor que os homens atribuem a elas. Trata-se dos homens cuidarem de mudar seus juízos de valor: todas essas filosofias se querem terapêuticas” (Hadot, 2014: 154 e 155).

[5] “Em uma entrevista para a revista de Filosofia, Editora Escala, disse que a Filosofia Clínica pode ser entendida como uma consequência no desenvolvimento do diálogo entre a Medicina e a Filosofia, no diálogo entre essas áreas. Não poderia ser diferente, uma vez que, por minha própria história, é no hospital que propriamente ela inicia. No entanto, a clínica filosófica não diz respeito aos aspectos da saúde, da normalidade, da patologia, não diretamente, mas refere-se aos aspectos existenciais, entre os quais podemos incluir o que a Medicina tem por doença” (Packter, 2015: 109-10).

[6] O paradigma da complexidade surgiu como um ramo da filosofia da ciência no início dos anos de 1970 com pensadores como Edgar Morin e Ilya Prigogine. Ao lado de outros tantos como F. Capra, G. Bateson, H. Maturana, U. D’Ambrósio e B. Nicolescu, o nome de L. Packter hoje se insere entre os grandes.

[7] “Mas em que verdades dormem as intenções / Se o que balança em mim não é a rede, / Porém um sonho que divaga em meu corpo? / Meu corpo dorme… mas o dia é que é preguiçoso. / O corpo não é mais verdadeiro do que o que se pensa do corpo. / Emoções físicas do pensar. (…). Poesia completa: um abraço por escrito em uma carta de amor. / Qual pedra é mais real do que isso? / Quando a solidão chega, a verdade cobra o seu preço”. Trechos do poema “Insólito” (Goya, 2011: 106-7).

[8] “’Pesar’, segundo alguns dicionários etimológicos, veio do latim pensare, que significava ‘suspender’. Era um verbo aplicado ao uso da balança (pendurar os dois pratos da balança). Daí se originou a palavra ‘pesar’, tanto no sentido de verificar o peso, como no de ponderar – por exemplo, na expressão ‘pesar prós e contras’.” (Aguilar, 2007: 113).

[9] Lúcio fala, por exemplo, sobre “autogenias transversais” (Sendtko, 2013), isto é, acontecimentos episódicos, intensos e inclassificáveis, fragmentos assimétricos e não lineares em seus caracteres de anunciação, embora aparentemente inteligentes ou guiados por uma suposta autoria, que às vezes atravessam a nossa a consciência humana e alteram o fluxo inercial dos nossos vínculos cognitivos de intencionalidade e interpretação, gerando em nós um estado de atenção que se diferencia do habitual. Fenômenos suspeitos de significação oculta ou de coincidências significativas em demasia que não podem ser entendidos como dados fenomenológicos. Fatos psíquicos ou físicos aparentemente objetivos que podem nos fazem pensar ou crer em elementos conectivos transpessoais ou inumanos, que atravessam a realidade, desfazendo a crença antropocêntrica e intuitiva da totalidade subjetiva e independente do “eu mesmo”. Um conceito criado por Packter que, penso, não pode ser devidamente compreendido fora da epistemologia da complexidade.

[10] “Indiscutivelmente, o filósofo é filho de sua época, e conhecer a época em que ele escreveu é de grande ajuda para conhecer melhor o homem. Também seria interessante saber dados sobre sua vida particular.

A noção de época, não obstante, não pode ser pensada como se fosse algo concreto, definido, claro para todo mundo. ‘Época’ é uma abstração. Se todos somos filhos de uma época, o somos da mesma maneira que nós e nossos irmãos somos filhos de nossos pais. Ora, cada filho é um ser único, é um indivíduo diferente dos seus irmãos. Há, portanto, algo próprio que o indivíduo tem e não compartilha nem com seus irmãos. O indivíduo é ele e a situação em que se encontra, como diz Ortega e Gasset” (Palácios, 1997: 49).

[11] “A primeira acepção de ethos (com eta inicial) designa a morada do homem (e do animal em geral). O ethos (eta inicial) é a casa do homem. O homem habita sobre a terra, acolhendo-se ao recesso seguro do ethos (eta inicial). Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos (eta inicial), o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos (eta inicial) no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações. Por conseguinte, o espaço do ethos (eta inicial) enquanto espaço humano, não é dado ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído” (Lima Vaz, 1988: 12-3).

[12] “Aceito o desafio, pela competência que o nomeou filósofo clínico – um amigo das verdades subjetivas de cada um –, sua função moral obrigatória é conservar-se sempre admirado perante a infinitude do outro, da primeira à última consulta, reconhecendo de uma vez por todas a própria ignorância sobre as profundidades que nele se ocultam. (…) “…um filósofo clínico é feito exatamente pelos dois termos que o definem. Depois, é sempre recomendável não esquecer o significado original da palavra ‘filosofia’, criada por Pitágoras, que quer dizer ‘amor ao conhecimento’. O filósofo que se dispõe a ajudar o próximo sabe que para se ter amor ao conhecimento é preciso ter um conhecimento amoroso. Para mim, o filósofo clínico é um filósofo do amor” (Goya, 2010: 41 e 183).

[13] “… muitas vezes é mais fácil fazer-se terapeuta escondendo do outro as próprias fraquezas (…). Não quero para mim a máscara da virtude teatral, descobrindo um meio de tornar a clínica sedutora, agradando aqueles cuja estima evita a sinceridade do meu verdadeiro tamanho” (Goya, 2010: 205).

[14] Faço aqui a distinção conceitual entre os termos “eu mesmo”, referindo-me à ideia da obviedade imediata e autoevidente da consciência subjetiva para consigo em total redundância, sem o uso da racionalidade para a aquisição do autoconhecimento. Pela expressão “eu próprio” quero significar o uso mediado da racionalidade para o conhecimento objetivo e não óbvio de si mesmo, com o acréscimo da reflexão sobre a dobra do próprio discurso ou pensamento, apropriando-se de si com autonomia.

[15] Frase atribuída ao filósofo grego Pitágoras de Samos, que viveu entre 571 a.C. e 570 a.C. (Doczi, 1990).

[16] O noumênico se refere ao campo transcendente, das essências ou das “coisas em si mesmas” que a faculdade humana demonstra por vezes ser capaz de apreender através de uma via intuitiva ou espiritual. O fenomênico se refere ao campo da experiência imanente, no nível da realidade material que percebemos com nossos cinco sentidos, cuja análise é calcada na tradição newtoniana-cartesiana das ciências e na discursividade racional (Zatti, 2007: 30).

[17] A exemplo de Canguilhem (2000) e de Foucault (1999).

[18] “aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber”. Apologia de Sócrates, 21d (Platão, 1999).

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