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LIBERDADE E PSICANÁLISE NA FILOSOFIA SOCIAL DE ERICH FROMM
Will Goya, filósofo Clínico
Publicado na Revista FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 811-830, set./out. 2008.
Resumo: O artigo apresenta uma análise, segundo o pensamento de Erich Fromm, da “patologia” da alienação psíquica inconsciente da sociedade industrial que se caracteriza pelo comportamento social consumista e pelo sistema patriarcalista autoritário. Identificado o problema, busca examinar sua visão humanista da liberdade social, que pretende ser uma necessidade ética urgente ante as determinações sócio-econômicas.
Palavras-chave: alienação psíquica, consumismo, psicanálise e liberdade
Abstract: The article introduce an analysis according to thought of Erich Fromm, about the pathology of the unconscious psychic alienation of the industrial society that characterizes itself for the consumer social behavior and for the authoritarian patriarcalista system. Identified the problem he search to examine his vision humanist of the social freedom, that it intends to be an urgent ethical necessity for the socio-economic determination.
Key words: psychic alienation, consumer, psychoanalysis and freedom.
I – Raízes Inconscientes do Comportamento Social
1. Do sentimento de impotência
Quando Fromm se pergunta sobre a qualidade de vida na sociedade capitalista de seus dias, ele se baseia fundamentalmente no modelo sócio-econômico de produção e consumo industriais existentes até a década de 70. Em sua visão, Ocidente e Oriente têm, grosso modo, uma mesma necessidade de consumismo crescente, própria do século XX. Fruto do sistema industrial, o endereço do consumidor contemporâneo não se restringe a uma estrutura política selecionada, pois “os russos estão tão ansiosos por criar o Homo Consumens como nós, só que estão um pouco atrasados”[1]. Segundo ele, a propósito, a União Soviética pode ser chamada de capitalismo estatal[2].
Do ponto de vista psicopatológico, segundo Erich Fromm, o centro gravitacional da cultura capitalista é o consumismo passivo. O consumo, no entanto, é próprio da vida, do crescimento biológico e das relações humanas; afinal, precisa-se comer, vestir, trocar valores de uso econômico etc. Todavia, há uma espécie compulsiva de consumo que unicamente visa aliviar a ansiedade, a insegurança ou mesmo o desespero subjacentes à nossa época. Ironicamente, constata ele que o homem contemporâneo, com seu avançado conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade espiritual, não sabe bem o que deseja e por isso não consegue satisfazer-se plenamente, sentindo-se vazio de realizações:
“Uma pessoa deprimida sente como que um vazio em suas entranhas, sente como se estivesse paralisada, como se lhe faltasse o que é preciso para agir como se não pudesse mover-se adequadamente por falta de algo que poderia pô-la em movimento. Se consome alguma coisa, a sensação de vazio, paralisia e debilidade pode abandoná-la temporariamente e, nesse meio tempo, será capaz de sentir: afinal de contas, sou alguém; tenho algo dentro de mim; não sou uma coisa vazia. Enche-se de coisas para expulsar seu vazio interior. É uma personalidade passiva que pressente ser pouca coisa e reprime essas suspeitas, tornando-se HOMO CONSUMENS.”[3]
Esse sistema econômico baseia-se na máxima produção e no máximo consumo. Os veículos de comunicação de massa dedicam-se incansavelmente à produção de necessidades falsas ou artificiais que a indústria logo procura saciar, inclusive para manter-se atuante e competitiva no mercado. Mesmo a geração mais jovem, dos anos 60, segundo Erich Fromm[4], apesar de rejeitar a ordem patriarcal e a sociedade de consumo, inclina-se igualmente às influências do sistema por meio de uma nova orientação consumista, tragando sexo, rock e drogas. Numa sociedade ávida por consumo, o sexo tornar-se-ia fatalmente um grande objeto consumível; de maneira que para ele não se pode atribuir a Freud a raiz da chamada “Revolução Sexual” – ainda que este tenha descoberto a existência de desejos inconscientes e então tenha inaugurado um novo sentido de honestidade social, eliminando o valor aparente das juras de boas intenções, e com isso aliviando a sobrecarga de sentimentos de culpa de uma sociedade moralista. Carecendo de reconforto emocional, torna-se fácil substituí-lo pela intimidade física. Vazio de amor, o homem moderno não mais consegue oferecê-lo e, impotente desse valor tão profundamente humano, resta-lhe o desejo de sacrificar-se à vontade social, por qualquer preço, apenas para ser amado. É como um vício, quanto mais nele se satisfaz, maior a necessidade de satisfazer-se. Fromm chama isso de “narcótico cultural”[5].
Eis a modernidade do nosso século: pela primeira vez na história a necessidade de prazer, de comer e beber fartamente, de conforto e satisfação estética (como o desejo de só viver em casas bonitas) não surge do íntimo das pessoas, mas antes é motivada e cultivada a partir do seu exterior, das exigências econômicas e sociais do industrialismo. O indivíduo comum vive como uma criança lactante no seio das determinações sociais, fixado no consumismo e incapacitado de assumir sua verdadeira força produtiva, constituída de razão e amor.
“Divertir-se consiste principalmente na satisfação de consumir e ’tomar’ mercadorias, paisagens, alimentos, bebidas, cigarros, pessoas, conferências, livros, filmes, tudo é consumido, engolido. O mundo é um grande objeto para o nosso apetite: uma grande maçã, uma grande garrafa, um grande seio… Como poderemos deixar de ser desiludidos se o nosso nascimento se detém no seio materno, se não somos nunca desmamados, se continuamos sendo bebês crescidos…?” [6]
De igual maneira, a nossa era reduziu excessivamente a capacidade de autoreconhecimento do sofrimento psíquico. Para Fromm, as pessoas hoje não sofrem menos do que sempre sofreram ao longo da história, mas com a generalizada inconsciência das próprias dores o homem hodierno inibiu em si mesmo a liberdade de se autodesenvolver; ao perder a capacidade de sofrer, perdeu também a capacidade de transformar-se[7]. Devido à alienação de si mesmas, as pessoas já não possuem plena consciência de seu sofrimento, aceitando-o como um fato normal e indiferente no mundo em que vivem; e só deixam de recusá-lo quando ele aumenta além de sua intensidade habitual. E como as pessoas não se dão conta do quanto o sofrimento é generalizado, também não se apercebem do valor da solidariedade.
Segundo Fromm, na medida em que as pessoas não estejam emotivamente inválidas, a produtividade é uma tendência espontânea; a orientação improdutiva nada mais é que a expressão do caráter neurótico. O autor identifica, em analogia com a psicanálise de Freud, a improdutividade como sendo a fixação no desenvolvimento das fases pré-genitais, própria das atitudes dependente, cúpida e avarenta. Conclui assim que virtude e saúde mental são uma só coisa[8] ou que a falta de amor para com o semelhante redunda em doença psíquica.
“Não deixa de ser curioso que tantos homens acreditem que viver bem não dá o menor trabalho”[9], diz o filósofo e psicanalista numa entrevista ao jornal francês “Le Monde”, meses antes de seu falecimento em 1980. Frente ao moderno conceito norte-americano de progresso ilimitado, de que o aumento de consumo torna o homem mais feliz, de que o verdadeiro objetivo da vida é ter e não ser, de que o uso da razão exclui a afetividade etc., justifica-se a necessidade de duvidar radical e racionalmente de tudo isso. Na obra Ter ou Ser?, Fromm observa que, ao lado das contradições econômico-burguesas, quando ele se vale da análise marxista, é evidente o fracasso das duas mais importantes premissas psicológicas do industrialismo: 1) o princípio do hedonismo radical, de que todo desejo deve ser satisfeito imediatamente e ao máximo; e 2) o de que a cobiça e o egoísmo são forças motrizes da evolução humana e suscitam o crescimento econômico através da competitividade.
É bom ressaltar que sua análise sobre as sutilezas psicológicas da compulsão neurótica ao consumismo não está desvinculada da problemática das desigualdades econômicas entre as sociedades de classes. Portanto, quando ele se refere ao Homo consumens, isso…
“…não tem validade alguma para as pessoas que vivem na pobreza, embora possam estar fascinadas pela idéia de que aqueles que desfrutam de todo o luxo levam uma vida paradisíaca. Os pobres são apenas figurantes que ajudam a encher as amplas telas que os ricos se divertem olhando. O mesmo se pode dizer a respeito das minorias; nos Estados Unidos, isso é especialmente verdadeiro para os não-brancos. Mas acima e além disso, é verdadeiro no mundo todo. É verdadeiro para aqueles dois terços de toda a humanidade que nunca se beneficiaram da ordem social autoritária, patriarcal”.[10]
“…Os países mais pobres apresentam os mais baixos índices de suicídio, e a crescente prosperidade material da Europa foi acompanhada por um número crescente de suicídios”[11].
Falsamente notória, a questão de consumo para a passividade coletiva do nosso meio capitalista ainda é formulada geralmente como um mero problema financeiro, o de não termos dinheiro suficiente para acompanhar o curso acelerado de produção cultural, o ritmo da moda. Daí o valor pessoal de alguém ser medido socialmente pelo quanto ele possui e não pelo que simplesmente é. A angústia do sentimento existencial de pobreza gera no homem a inveja, a cobiça, uma auto-imagem de inferioridade e finalmente, no âmago de si mesmo, a característica moral básica do eu psicológico contemporâneo: a insuportável sensação de impotência[12].
2. Do patriarcalismo
Influenciado pela antropologia de Johann Jakob Bachofen[13] e de L. H. Morgan, Erich Fromm entende que as sociedades têm sido organizadas em dois princípios estruturais: um patriarcalista e uma base maternocrática. No princípio maternal, diametralmente oposto ao primeiro, a mãe é a chefe e o esteio da casa. Ela não é temida, antes é a figura mais amada e respeitada da família. Seu amor é distribuído igualmente aos filhos. Como estes dependem biologicamente do seu afeto e alimento, ela provê incondicionalmente a cada um, sem preferências.
“A mãe ama todos os seus filhos igualmente. São todos eles, sem exceção, fruto de seu ventre e todos necessitam de seus cuidados. Se as mães cuidassem apenas daqueles bebês seus que lhes agradam e lhes obedecem, então a maioria das crianças morreria. Como se sabe, uma criança pequena dificilmente faz o que sua mãe gostaria que ela fizesse. Se as mães fossem guiadas pelo amor paterno, isso seria o fim biológico, fisiológico, da raça humana. Uma mãe ama seu filho porque é seu filho e é por isso que não se desenvolvem hierarquias em sociedades matriarcais. Existe, pelo contrário, o mesmo amor acessível a todos os que necessitam de cuidados e afeição”.[14]
Por outro lado, a estrutura cultural patriarcalista é a sociedade do ter, do conquistar e dominar, vigorando há cerca de 4000 anos no Ocidente. No estatuto do direito patriarcal primitivo tudo era propriedade absoluta da figura do Pai: a mulher e filhos, a terra, os escravos etc. A dominação da mulher pelo homem através da força física foi a primeira forma de exploração do semelhante. Com a vitória institucional dos homens, os valores de poder e de destruição tornaram-se a base gerenciadora do comportamento social, sendo então a mulher sua principal vítima. Essa sociedade perpetuou-se através da família, elegendo um filho sucessor, quase sempre o primogênito, para que ele assimilasse as expectativas paternas e cumprisse suas determinações em busca de seu amor e proteção. Enquanto na sociedade patriarcal os princípios que agrupam as pessoas são a Lei e o Estado (patrimônio), numa sociedade matriarcalista são os vínculos naturais de afeto que as fazem reunir-se (matrimônio).
Sob o alicerce patriarcal ergueu-se a civilização autoritária típica do hemisfério leste. A premissa histórica de obediência incondicional à religião deste lado do mundo, velha como o Antigo Testamento, é resultado da interiorização de ordens e proibições paternas[15]; o que tornou a sujeição ao poder imaginário de Deus um valor emotivo com sentido de legitimidade. A noção freudiana de superego na sociedade patriarcal, segundo Fromm, é inteiramente correta, apenas equivocando-se por não considerar essa espécie de consciência num contexto social localizado e particular, e sim como se fosse uma consciência per se.
Fromm dá exemplos, ao longo de sua obra, de alguns contextos sociais religiosos onde se encontram consciências verdadeiramente não-autoritárias[16]. Num deles, em Ter ou Ser?[17], ele cita um período passado (sem apontar datas) da Igreja Romana. Segundo o autor, ao lado do elemento paterno de domínio político – através da força -, somava-se o culto à Virgem Maria e o cristianismo maternal do clero e do Papa, representando o amor e perdão universais. No processo econômico de produção, o trabalho rural era fundamentado numa harmonia romântica com a terra e a Natureza. A exploração patriarcalista de submissão da Natureza, só surgiu quando a Igreja começou a minguar a solidariedade universal e voltar-se para os valores seculares. Com o abalo dos princípios maternais em que as pessoas se alimentavam até então, o protestantismo logo afirmou o poder histórico da autoridade masculina, fazendo do trabalho, no tocante à agricultura, e do lucro, as únicas formas de se conquistar a aprovação amorosa da família e da sociedade. Através do desinteresse na produção de bens de uso comunitário e da acumulação de capital – ou industrialização -, a religião tornou-se incompatível com o cristianismo autêntico.
Porque só as tecnologias modernas dão ao homem industrial a sensação de pleno controle do meio-ambiente, não se pode concluir que a idéia patriarcal de controle da Natureza é um valor absolutamente moderno. É claro que a sociedade agrária pré-industrialista também controlava o plantio; porém, era mediante um sentimento de gratidão filial com a mãe-Natureza que a todos provê gentilmente. Ao contrário, a modernidade se identifica meramente de forma intelectual com o poder manipulador da tecnologia. Para Fromm, a tecnologia, que “usa a capacidade de pensar do homem para produzir coisas”, é, a bem dizer, “o substituto masculino do ventre feminino”[18].
A título de conhecimento doutra tradição religiosa, como premissa de recusa à universalidade do conceito freudiano de superego, Fromm afirma, em Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, que o budismo também nunca assimilou a figura autoritária. Isso naturalmente deve ser compreendido, como ele o faz, a partir da leitura de D. T. Suzuki.[19]
Os dois princípios, matriarcal e patriarcal, embora sejam fortes determinantes sociológicos, são antes uma contradição inerente à existência humana; correspondem a uma polaridade básica de nossa natureza, e o lado produtivo de seus dois termos deve ser aceito[20]. Os dois pólos, uma vez integradas, atingem uma unidade dinâmica e se harmonizam numa complementaridade circular e totalizante. Com isso Fromm pretende dizer que no processo da individuação há uma necessidade ética, em cada homem e em cada mulher, de desenvolvimento e integração de duas virtudes indispensáveis à perfeição moral: a compaixão e a justiça. A compaixão exprime uma qualidade materno-feminina, enquanto a justiça revela paternidade e masculinidade – uma espécie de amor que nasce da exigência condicional da ação correta e merecedora. Esta síntese, contudo, jamais poderá ser obtida numa sociedade patriarcal.
“O mais profundo anseio dos seres humanos parece ser uma constelação em que os dois pólos (masculinidade e feminilidade, macho e fêmea, misericórdia e justiça, sentimento e pensamento, natureza e intelecto) estão unidos numa síntese, em que ambos os aspectos da polaridade perdem seu antagonismo e, em vez disso, dão os matizes reciprocamente”[21]
Mas, segundo Bachofen, a sociedade matriarcalista também possui características negativas para o crescimento humano, na medida em que ela só afirma a face sensível, afetiva, fraterna e comunitária do ser, esquecendo-se do lado masculino, eminentemente racional e individualista, também necessário à maturidade dos homens. Caso não se somem os lados positivos de ambos os princípios – o amor e a razão -, e prevaleça na sociedade somente a pura estrutura matriarcal, isso será tão maléfico ao homem quanto tem sido a atual dominação do patriarcalismo no Ocidente. É o que se pode deduzir das palavras de E. Fromm:
“O aspecto negativo da estrutura matriarcal também foi claramente visto por Bachofen: por estar atado à Natureza, ao sangue e ao solo, o homem é impedido de desenvolver a sua individualidade e a sua razão. Permanece uma criança e incapaz de progredir (…). A escola marxista abraçou com grande entusiasmo as teorias de Bachofen devido ao elemento de igualdade e liberdade à estrutura matriarcal (cf. Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado). Depois de muitos anos de não se haver prestado muita atenção às teorias de Bachofen, os filósofos nazistas adotaram-nas, demonstrando igual entusiasmo, porém por razões opostas: atraía-os a irracionalidade dos vínculos do sangue e do solo, que é o outro aspecto da estrutura material [sic., isto é, maternal], tal como a expressou Bachofen.”[22]
No ano de 1932 Fromm escreve ao público alemão uma resenha de Briffault[23] onde ressalta a idéia de que o altruísmo nasce, em princípio, do amor maternal ao longo da gestação e do cuidado pós-natal; também que a polaridade masculino/feminino não é devida a diferenças sexuais biológicas, mas em grande parte a determinações da cultura. Dessa forma, há razões filogenéticas que justificam o porquê da existência espontânea de uma capacidade especial de amar que as mães possuem. Capacidade esta que é “instintivamente” diferenciada do sentimento paterno, devido à própria natureza animal específica da mulher; o que não impede o homem de desenvolver um amor maternal. É preciso dizer que o amor paterno é aqui referido pelo autor não como sendo do Pai X ou do Pai Y, mas no sentido de um “tipo ideal”, usado por Max Weber[24]. Contudo, para E. Fromm, a hegemonia ocidental do típico amor masculino, de controle e compensação, sobre ambos os sexos, é resultado de toda uma determinação do império da cultura patriarcal.
Palestrando numa rádio suíça, sobre a crise da ordem patriarcal, Fromm se remete à literatura grega para exemplificar o conflito entre a mensagem autoritária e o humanismo. Trata-se da “Antígona” de Sófocles, que representaria o embate entre o patriarcalismo de Creonte, para quem a lei do Estado é soberana e que só acredita no poder, e o princípio matriarcal de Antígona, que segue a mais alta de todas as leis, o espírito da compaixão, dos laços de sangue e da humanidade. A peça mostra a grande derrota de Creonte que, traduzindo-se em fundamentos psicológicos da política contemporânea, seria – como Fromm o disse na ocasião – “um típico líder fascista”[25].
Quando ele se remete à análise de sua própria época, percebe que a sociedade ocidental realizou a quase total extinção do amor materno; que a estrutura capitalista dominante mantém seus postulados patriarcais, a saber: a) o controle da Natureza; b) o uso da força na exploração dos seres humanos; e c) o utilitarismo econômico da finalidade essencial de lucro. Em conseqüência, declinam-se as características psicológicas do homem moderno nesta sociedade: sem compaixão, solitário, fragmentado, e por isso violento. É essa situação de crise que o leva a buscar alguma política alternativa de não-violência como resposta à crise do seu tempo.
II. A Evolução do seu Pensamento Político
1. Mudanças de opinião sobre o conceito de liberdade
Para se evitar um risco de superficialidade na leitura, é mister esclarecer como se situa na obra de Fromm a clássica interrogativa: o indivíduo é determinado pelo meio ou, antes, é ele quem o faz? Pode-se dizer que há duas fases no pensamento do autor, não separadas radicalmente, mas bem distintas, quando se considera o peso de sua reflexão sobre o ponto de vista político da liberdade.
1.1. O caráter social enquanto determinismo rigoroso
Em seus escritos iniciais, na língua alemã materna, Fromm ainda não concebe definições originalmente suas em relação às necessidades essenciais e ao processo social oriundos da condição humana. Basicamente, seu esforço concentra-se nas repercussões sociológicas do freudismo. Sua psicologia social analítica é exposta como uma ciência natural, materialista, que busca compreender o comportamento irracional como uma conduta motivada inconscientemente pela influência da infra-estrutura sócio-econômica sobre os impulsos psíquicos elementares. Nesta fase, localizada entre as décadas de 20 e 30, Erich Fromm é, conforme diz Sérgio P. Rouanet[26], um teórico estreitamente freudo-marxista.
Foi através de sua obra que pela primeira vez se fundiu de maneira concreta o pensamento de Marx e Freud; e isso se deu em 1930, em o Dogma de Cristo. Quem o afirma, com razão, é Franz Borkenau[27], erudito do partido comunista que freqüentou o ambiente do Instituto de Frankfurt e escreveu uma resenha do mesmo texto no lançamento da revista “Zeitschrift für Sozialforschung”, de publicações desta Escola. Trata-se ali do uso da psicanálise aplicado aos fenômenos históricos, compreendendo as idéias e ideologias individuais como um resultado de necessidades psíquicas básicas submetidas a condições sociais e econômicas específicas. No entendimento de Martin Jay, Fromm então afirmara em termos psicológicos o que Horkheimer e Marcuse, depois de sua ruptura com Heidegger, diziam sobre a noção abstrata de historicidade.
Antes, porém, de abordar o referido artigo e outros congêneres da época, é importante recordar com o Prof. Sérgio P. Rouanet, qual era o estatuto político que norteava as primeiras preocupações naquele tempo dos freudo-marxistas do Institut für Sozialforschung, de 1923 a 1933, e dos frankfurteanos do Instituto Psicanalítico, fundado por Horkheimer em 1929; uma vez que Erich Fromm esteve vinculado a ambos. Segundo Rouanet, naquele tempo a classe operária não era totalmente absorvida pelo sistema capitalista, devido a uma forte depressão econômica. Ademais, a ortodoxia então reinante do marxismo ainda acreditava ser o proletariado, e não outros agentes históricos, a grande alavanca da revolução social. É deste contexto que nasce a pergunta mor: “como é possível que a classe operária pense e aja contra os seus próprios interesses?”[28]
Precisamente na mesma data Reich e Fromm deram suas maiores contribuições à aliança entre os pensamentos de Freud e Marx. Fromm demonstrou um forte interesse de criar regras básicas para uma psicologia social. Nisto criticou seriamente a idéia de que a psicologia era aplicada só ao indivíduo em particular. Neste sentido é que Erich Fromm chamou a atenção para a primeira obra de Reich[29].
Em o Dogma de Cristo, o conteúdo da ideologia é dado numa condição política localizada, onde a base social do cristianismo primitivo era formada pelo proletariado e pelos pequenos burgueses. Entretanto, sua forma é proporcionada pelo conflito edipiano: a estrutura pulsional, intrapsiquicamente, enfatiza o elemento revolucionário do ódio contra o Pai na exaltação inconsciente do parricídio. A partir do ponto de vista ideológico da Igreja, Cristo, em seus sofrimentos humanos, é transfigurado para os proletários, afligidos por injustiças, como sendo ele a imagem substitutiva do “filho” que todos são. Isto é, a pobreza econômica das classes oprimidas encontra uma gratificação substitutiva na identificação psicológica com o Filho e com o desejo de morte do Pai, propiciando, assim, uma imaginária revolução social. A crucificação de Cristo no passado suprime, inconscientemente no presente, a tensão edipiana entre o filho e o pai, entre o proletário e as classes dominantes. Mediante a superioridade absoluta do Pai original, sob a força atuante do cristianismo dogmático, o filho-proletário internaliza a revolta política num sentimento de culpa coletivo que preserva as relações vigentes de poder e impede a renovação do parricídio primitivo. A mesma estrutura pulsional que antes centrava-se no ódio, agora, num momento histórico seguinte, modela ideologicamente uma nova dimensão conservadora e conformista através do amor institucional a Deus.
Assim, nesta obra, cada sociedade contém uma estrutura libidinal típica determinada pelas condições sócio-econômicas sobre as tendências pulsionais. As superestruturas ideológicas são estabelecidas por vínculos afetivos inconscientes de obediência pelas classes inferiores, que por esse mecanismo aceitam passivamente a opressão restritiva. Rouanet assinala que embora Marx e Engels compreendessem a ligação entre ideologia e sua base infra-estrutural, não dispunham de uma psicologia científica, que viria a ser a psicanálise, que explicasse a transposição psíquica dos conteúdos dos meios materiais de produção para os conteúdos e intensidade das excitações pulsionais.[30] A correlação direta entre o conceito marxista de “ideologia” e o conceito psicanalítico de “racionalização” veio a ser feita por Erich Fromm em 1932, no artigo Método e Função de uma Psicologia Social Analítica, onde ele afirma:
“A Psicanálise pode mostrar que as ideologias do homem são produtos de certos desejos, impulsos instintivos, interesses e necessidades, os quais, em grande medida, inconscientemente, encontram sua expressão como racionalizações – isto é, como ideologias. A Psicanálise pode mostrar que, embora os impulsos instintivos se desenvolvam, de fato, na base de instintos biologicamente determinados, a sua quantidade e conteúdo são grandemente afetados pela situação ou classe sócio-econômica do indivíduo. Marx diz que os homens são os produtos de suas próprias ideologias; a psicologia social analítica pode descrever empiricamente o processo de produção de ideologias, da interação dos fatores ’naturais’ e sociais. Portanto, a Psicanálise pode mostrar como a situação econômica é transformada em ideologia, através dos impulsos do homem.”[31]
A teoria posterior do “caráter social”[32], já está pré-formulada nessa estrutura libidinal típica, que é deduzida da soma de caracteres individuais de uma sociedade de classes. Teoria esta aliás, que Fromm originalmente introduziu à Psicologia Social, propiciando uma sólida crítica à cultura e ao comportamento contemporâneos. Interessante destacar sua carta a Martin Jay, em 14 de maio de 1971, onde afirma textualmente que o conceito de “caráter social” foi, sem dúvida, sua “mais importante contribuição ao campo da psicologia social”[33]. Esse caráter se constitui de uma base ou norma de socialização que atende interesses da elite dominante e serve de modelo à feitura de um caráter individual. O tipo de caráter social é produzido e recompensado individualmente pela comunidade conforme o que cada época exige. Então a necessidade social é internalizada num impulso da personalidade, de tal forma que ela se aproximará automaticamente mais do comportamento coletivo e sustentará a coesão da estrutura sócio-econômica geradora dessa mesma necessidade.
Para Fromm, o processo de ideologização é politicamente determinado por vários agentes sociais, como a escola, e a comunicação de massa, entre outros. Porém, em sua visão teórica, nos anos 20 e 30, é a família a mais importante modeladora do caráter social, porque está imbricada em todos os mecanismos culturais. Desde a primeira infância o indivíduo é educado conforme aos valores extrafamiliarmente constituídos e legitimados pela autoridade paterna. Segue-se então uma correspondência entre o medo inconsciente do Pai e a normatividade social. Assim, o medo psicopatológico da cultura patriarcalista, mais o medo consciente e objetivo do aparelho regulador do Estado (polícia, exército), conjugam-se para formar um ego enfraquecido e dependente de um poder superior. Decorre que a família, especialmente a pequeno-burguesa, a classe média, transforma-se numa “agência psicológica da sociedade”[34], uma máquina ideológica capaz de produzir em massa a estrutura libidinal própria das relações de produção capitalista, ou seja: o caráter autoritário.
A base pulsional desse caráter, conceito nevrálgico da teoria da autoridade irracional, é a personalidade sadomasoquista. A submissão incondicional ao Pai evita a punição e garante o seu amor protetor, de tal maneira que com o tempo diminui-se o conflito edipiano-econômico e também o sentimento de culpa pela hostilidade filial. Logo, o sofrimento redentor transforma-se em causa de prazer. É essa a análise que Fromm faz do nacional-socialismo, tema central dos freudo-marxistas, capaz de explicar o porquê de tantas pessoas aceitarem com tranqüila resignação a opressão sofrida.
Dentro do freudismo clássico, segundo o qual para o “jovem Fromm” a origem da formação do caráter está na relação com o Pai, Rouanet observa o quanto ele ainda mantinha-se influenciado pela teoria psicanalítica das pulsões, porém, já tendia a distanciar-se dela.
“Fromm critica Freud, entretanto, por não ter visto que esse processo (de identificação projetiva da autoridade paterna via superego) serve à manutenção da sociedade de classe, e constitui, não o pressuposto da cultura em geral, mas a pré-condição para assegurar o poder da maioria sobre a minoria. É por isso que Fromm, aceitando as categorias freudianas, tenta historicizá-las.”[35]
Mas, se por um lado Freud fora influenciado pela teoria do totemismo de Sir James Frazer, por outro, Erich Fromm foi beber nos círculos socialistas a teoria do matriarcalismo, onde se afirmava que a sociedade patriarcal está vinculada à sociedade de classes. Entre os antropólogos mais ortodoxos, houve J. J. Bachofen (1861), L. H. Morgan, B. Malinowski (1927), o já referido Briffault etc. Mas, sobretudo, a relevância fundamental da teoria matricêntrica dava-se antes por interesse político numa sociedade alternativa que por uma simpática leitura histórica, visto sua existência real no passado ser de fato algo indemonstrável. Na verdade, Fromm queria mesmo é negar a universalidade do Complexo de Édipo; a mescla arbitrária de biologia e psicologia. Para ele, o ódio edipiano contra o Pai vinha pelo temor do filho de fracassar na sua utilidade econômica como herdeiro da propriedade. O que tornava este complexo apenas uma resultante do peso econômico das relações de produção.
Em 1941, seu livro Medo à Liberdade merece grande atenção do público, pois que em plena guerra ele discursa sobre o autoritarismo e toma como fácil exemplo a Alemanha. Ali acentua o pessimismo de Freud e nega seu instinto de Tânatos, equiparando-o, no entanto, com a necessidade de destruição, dizendo que o desejo de destruir é bastante variável em grupos sociais diferentes e mesmo dentro da própria cultura. Para Fromm, o instinto de morte ou a necessidade de destruição eram produtos da frustração do instinto de vida[36]. Afastada a dualidade dos instintos de vida e morte, ele retorna à dicotomia freudiana anterior, aos impulsos eróticos e de conservação. Nessa obra, ainda recusa a teoria metapsicológica da libido, de Freud. A novidade é que com esta também rechaça sua própria interpretação “psicologista” em O Dogma de Cristo, onde pretendera explicar “a formação do cristianismo primitivo como o resultado da ambivalência face à imagem do pai”[37].
Ao se fazer uma incursão na obra de Erich Fromm, sobre a questão da liberdade, observa-se que em 1941 tem fim a ênfase no determinismo social absoluto. Abriu-se espaço para a possibilidade de escolhas reais na sociedade, na medida em que o indivíduo adquire um maior grau de conscientização de sua psique. Pela primeira vez surge o conceito de “natureza humana”, mediante a necessidade individual de relacionar-se com o mundo exterior e assim evitar a solidão intolerável. Mas, o quadro geral das necessidades essenciais do homem só viria a ser plenamente elaborado em Psicanálise da Sociedade Contemporânea, em 1955. Dessa forma, ainda não há uma visão clara, aos seus olhos, daquela essência humana, definida em si mesma, para além das variáveis culturais. John H. Schaar, numa crítica a Fromm, diz algo a respeito:
“É interessante especular sobre as razões que Fromm teve para modificar a posição sobre a questão da natureza humana essencial, contra o determinismo social. Talvez a explicação possa ser explicada em termos de um crescente otimismo ostensivo, quase fanático, em sua obra. Em O Medo à Liberdade, Fromm propôs uma tese determinista pesadamente social, como um antídoto ao pessimismo freudiano. Em suas obras posteriores, teve de reformular a natureza humana, considerando o otimismo intrínseco a ela, porque a ameaça ao homem passou a ser não o pessimismo freudiano, mas as sociedades insanas. O otimismo de Fromm permaneceu aproximadamente o mesmo, mas os inimigos do otimismo se haviam modificado.”[38]
1.2. A liberdade potencial do ser humano
No contexto geral de sua obra, vê-se que Fromm é um pensador essencialmente moral, e que o problema da liberdade é intrínseco ao discurso ético. Mas, se em princípio ele afirma um pesado determinismo sociológico, já no final da década de 40, em Análise do Homem (1947), pode-se observar uma nova perspectiva em seus livros. Há uma primeira argumentação geral sobre a “natureza humana” que se normatiza socialmente a partir das condições existenciais do homem, impostas pela situação histórico-biológica do nascimento da civilização e, similarmente, do indivíduo. Inspirado por Spinosa e Dewey, Erich Fromm então acrescenta à sua psicologia social um completo sistema ético universal baseado nas condições existenciais do homem. Conforme sua opinião, “é impossível compreender o homem e os seus distúrbios mentais sem compreender a natureza dos conflitos morais e de valores”[39].
Se antes o conceito de liberdade dependia exclusivamente do meio sócio-econômico, das relações exteriores à individualidade, depois, com a Análise do Homem e mais ainda com Psicanálise da Sociedade Contemporânea, este conceito tornou-se também uma característica da “essência” homem, que existe independentemente da cultura. É o que afirma o autor:
“ao dizer que a estrutura sócio-econômica da sociedade molda o caráter do homem, refiro-me apenas a um dos pólos da interconexão entre a organização social e o homem. O outro pólo a ser levado em conta é a natureza humana, que por sua vez molda as condições sociais em que o homem vive. Só entenderemos o processo social se partirmos do conhecimento da realidade do homem tanto de suas propriedades psíquicas como fisiológicas, e se estudarmos a interação entre a natureza do homem e a natureza das condições externas sob as quais ele vive e que terá de dominar para que possa sobreviver”[40].
O conceito de “essência humana” – pode-se dizer que é a medula de seu pensamento – não pode ser confundida com substância metafísica a priori. Isto, para ele, seria o equívoco de uma universalidade abstrata em que o indivíduo está exaurido da sua historicidade. O conhecimento dessa “natureza humana”, ou seja, da psique, deve basear-se unicamente na análise existencial das necessidades básicas do homem resultantes da singularidade e contradições da situação humana. A essência psíquica do homem resulta de dicotomias existenciais que nascem da debilidade biológica da espécie humana, seja na criança seja no imaginário do início da civilização, e que motivam os indivíduos e povos a desenvolverem suas potencialidades intrínsecas. Noutras palavras, poderia-se dizer que o que faz do animal humano é sua racionalidade e amorosidade próprias. Assim, por um “capricho do universo”[41], pessoas ou povos são impulsionados por força da sua natureza, isto é biopsiquicamente, a cumprirem sua humanidade em latência. Conseguindo serão plenamente humanos, caso contrário des-humanos, e por isso mesmo existencialmente infelizes, imorais e neuróticos.
Assim, o ponto principal do conceito de liberdade em Fromm mora na busca da realização existencial do homem, considerando as características antropológicas de sua natureza biológica e psíquica, não se limitando à questão de saber se o homem é ou não determinado pelo meio. É dessa forma que a liberdade deve ser alcançada: mediante o sentido da evolução humana através da superação de barreiras, internas ou externas, que impedem o desenvolvimento espontâneo de cada indivíduo. Nesse processo evolutivo há dois tipos de liberdade: ela pode se definir negativamente em relação a alguma coisa ou pessoa – definindo-se como “liberdade de”, isto é, uma independência em relação às várias autoridades paternas e às sociais. Nesse sentido, em relação ao indivíduo, a liberdade é “a aptidão de preservar sua integridade pessoal em face ao poder, é a condição básica da moralidade”[42]. Mas a liberdade também se afirma positivamente, como realização da individualidade no sentido de uma “liberdade para” o exercício da razão e do amor. Esta liberdade não se refere somente à emancipação da coação, em relação à desobediência, mas à capacidade latente do homem em ser autêntico, cheio de vida e alegria. O primeiro tipo de liberdade não é condição suficiente para a total realização humana; por outro lado, é somente sob a ótica dessa “liberdade para” que pode o homem concretizar a plena liberdade ético-humanista, seja ela ao nível do indivíduo ou da política. Para Fromm, este segundo tipo de liberdade é condição necessária à felicidade assim como à virtude.
Em O Coração do Homem (1964), ele afirma que, ao se falar da liberdade, costuma-se fazê-lo de maneira abstrata e teórica, deixando a questão prática de fato insolúvel. Para o autor, ainda que se reflita sobre as idéias relativas à liberdade, isso nada vale se o problema não é experienciado ao nível dos sentimentos e transformado em realidade por meio de atitudes concretas. Como simples e válida ilustração, o autor traz à luz o velho dilema de ser livre ou não para escolher entre fumar ou deixar de fumar. Imaginariamente, Erich Fromm supõe um inveterado fumante que se informou sobre os riscos para a saúde que existem no fumo e concluiu querer parar de fumar. Porém, esta aparente decisão não é mais que a formulação de uma esperança, visto que nada o impede de mais tarde continuar no vício. No fundo, uma decisão verdadeiramente consciente exige um ato concreto, específico e singular. Logo, no exemplo citado, para ser honesto com o problema, seria preciso tornar real a escolha: diante de um único cigarro, decidir se deve ou não fumá-lo; e novamente mais tarde teria de se perguntar acerca de um outro cigarro. É dessa maneira que, para Fromm, a questão da liberdade da consciência só é remetida ao instante real do presente.
É importante entender que não há verdadeira liberdade ética de escolha entre duas alternativas boas. A preocupação de fato entre o determinismo e o indeterminismo deve-se unicamente à liberdade para escolher o melhor contra o pior…
“e melhor ou pior sempre interpretados com referência à questão moral básica da vida – a que existe entre progredir e regredir, entre amor e ódio, entre independência e dependência. A liberdade nada mais é do que a capacidade para seguir a voz da razão, da saúde, do bem-estar, da consciência, contra as vozes das paixões irracionais (…) O que estou procurando destacar é que a liberdade para seguir as ordens da razão é um problema psicológico…”[43]
Merece relevância o valor ético que Fromm confere em sua obra à idéia de “melhor” ou “ótimo”, tanto para negar o conhecimento puramente racional e ilimitado[44], quanto para fugir ao maniqueísmo, à pseudo mútua exclusão das meras possibilidades entre o sim e o não; entre o bem e o mal ou o certo e o errado absolutos. Com essa idéia, o conceito de liberdade não tem em mira o idealismo fantasioso, mas a realidade crítica tal como ora se nos apresenta, dentro de nossas reais possibilidades. É o reconhecimento, inclusive, de nossa responsabilidade para com o desenvolvimento da vida. Eis como ele o diz:
“Em cada pessoa há um ponto ótimo daquilo que ela pode se tornar. Nem tudo é possível, e muitos homens perdem a vida tentando tornar-se o que não podem ser, e negligenciando o que poderiam tornar-se. É uma perda de tempo e um fracasso. Cada um deveria então começar imaginando quais são seus limites e suas possibilidades”[45].
No seu esquema conceptual, a questão do determinismo versus a liberdade de escolha é indiscutivelmente apresentada dentro do entendimento terapêutico das forças inconscientes e não independentemente delas, sejam estas psicoindividuais ou psicossociais. Segundo Fromm, é imprescindível a um indivíduo, que busca a liberdade máxima como ser humano, tomar consciência das forças internas e exteriores que atuam sobre ele, impedindo-o de ir além. As pessoas iludem-se na crença de que suas escolhas determinam sua liberdade; contudo, são quase sempre inconscientes da motivação por traz dessas escolhas. À maneira de Freud, Marx e Spinoza, Erich Fromm também é ao mesmo tempo determinista e indeterminista. Por outras palavras, eles não negam as poderosas exigências da complexa influência social, econômica e biológica sobre o indivíduo; porém, acreditam que só poderão mudar o curso dos acontecimentos conscientizando-se da totalidade do problema.
“De fato, Spinoza é citado amiúde como determinista; Freud e Marx também já o foram. A alegação é até certo ponto verídica; a parte essencial, todavia, é freqüentemente ignorada, e é a que todos os pensadores disseram: ’Sim, o homem é determinado. Mas a missão da vida é superar esse determinismo, seja das forças econômicas ou das paixões irracionais de cada um, e alcançar um máximo de liberdade’.”[46]
Erich Fromm, examinando o problema da liberdade, isto é, o autoritarismo político e moral, chega à conclusão de que este é uma função da estrutura psicológica da pessoa, e que “a própria neurose é, em última instância, um sintoma da falência moral”[47]. Logo, a fim de que possa ser melhor avaliada e aquilatada, a personalidade deve-se contextualizar na análise do caráter social de que faz parte, e por conseguinte apoiar-se também no âmbito da filosofia política. Entretanto, não faltaram críticas à fé individualista que nosso autor tanto defende. Sob a acusação de alguns críticos de que se tornara uma “Pollyanna”[48], fechando os olhos ao determinismo histórico, ele responde que sempre manteve a mesma opinião de que a capacidade do homem para a liberdade, para o amor etc., depende quase totalmente das condições sócio-econômicas dadas, sendo “fenômeno relativamente raro”[49] a chance de encontrar amor em uma sociedade de indiferença e ódio. Nem por isso, segundo Fromm, se deve perder a fé nas próprias capacidades benignas. A simples idéia de que, em relação à destrutividade do autoritarismo, nada pode ser feito, resulta apenas numa defesa psicológica contra a exigência interna de uma consciência que se sente culpada.
“Certamente, há graves limitações ao desenvolvimento pessoal, determinadas pela estrutura social. Mas os supostos radicais que aconselham que nenhuma transformação é possível ou mesmo desejável, dentro da sociedade dos nossos dias, valem-se de sua ideologia revolucionária como uma escusa para a sua resistência pessoal às mudanças interiores.”[50]
III. Notas Bibliográficas
[1] – DOBRENKÓV, V.I. O Neofreudismo à Procura da Verdade – ilusões e equívocos de Erich Fromm – tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 129-130. Para uma opinião contrária, ver: “Conhecendo a União Soviética apenas da boca de terceiros e extraindo seus conceitos sobre ela dos escritos dos ideólogos burgueses que procuram dar informação antecipadamente deformada sobre o país soviético, Fromm identifica os sistemas sociais do socialismo e do capitalismo fundamentando-se apenas em que a ambos seria inerente o mesmo método industrial de produção’, que propicia o desenvolvimento das grandes uniões industriais… Em verdade, Fromm partilha os pontos de vista de William Rostow e Raymond Aron, criadores e divulgadores da teoria segundo a qual a sociedade moderna entrou numa fase de desenvolvimento industrial em que não tem qualquer importância quem seja o dono dos meios de produção, como se dirige a produção”.
[2] Cf. Erich FROMM, A Sobrevivência da Humanidade. Waltensir Dutra. 2ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1964, p. 76.
[3] Cf., Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, p.15-6. In: Do Amor à Vida. tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: JORGE ZAHAR, 1986.
[4] Cf., Idem., Ibidem, p.41-2.
Ver também in: Richard I. EVANS, Diálogo com Erich Fromm; tradução de Octávio Alves Velho. Rido de Janeiro: ZAHAR, 1967, p.81-2
[5] Cf. Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. tradução de E. A. Bahia e Giasone Rebuá. 10ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1983, p.31.
[6] In: Idem., Ibidem p.166.
[7] Cf. Idem, Quem é o homem?, in: Do Amor à Vida; op. cit., p.145.
Ver também: Idem, O Espírito de Liberdade. tradução de Waltensir Dutra. 4ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1988., p.77.
[8] Cf. Idem, Análise do Homem. tradução de Octávio Alves Velho. 7ª Ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1970., p. 41.
[9] Cf. Erich FROMM et alii. Entrevista ao Le Monde – o Indivíduo. tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: ÁTICA, 1989, p.42.
[10] Cf., Erich FROMM, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, op. cit., p.34.
“Mas algo posso constatar: no meio de pessoas mais simples encontrei maiores problemas – e mais felicidade, mais sofrimento – a uma grande satisfação por coisa pequena, mais dificuldades – e mais alegria pelo encontro, a visita, uma atenção. Talvez os desafios tenham permitido menos que alguém se envolvesse tão exclusivamente em seus problemas particulares – a necessidade de sobreviver levou para fora da casa, do subterfúgio, da depressão: Tem algo para eu fazer – vou tentá-lo! Quem sabe, se vou conseguir… ”In: Emanuel GNISS, Uma noção dinâmica do caráter da pessoa, p.100.
Para uma leitura do “caráter cumulativo” em economias desfavorecidas, ver: Erich FROMM, Car. Soc. Ald.
[11] In: Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, op. cit., p.21.
[12] Cf. Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, op. cit., p.29.
[13] “um autor que, lamentavelmente, já deixou de ser muito conhecido. Foi ele o primeiro pensador a descobrir a sociedade matriarcal… Com Bachofen estive em minoria, porque os seguidores de Bachofen são em reduzido número e não posso evitar ser minoritário.” Idem, Em Nome da Vida: um retrato através do diálogo. In: Do Amor à Vida; op. cit., p.104-6.
[14] Cf. Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, op. cit., p.30.
[15] “Deus é descrito como uma grande autoridade a que devemos todos obedecer”. In: . Idem, Ibidem p. 31.
[16] “A la luz de la temprana religiosidad de Fromm, vale la pena senãlar su discusión del judaísmo en este contexto. Aunque reconociera en su núcleo al Dios patriarcal, también destacaba en el pensamento judío elementos tales como la visión de la tierra de la leche y la miel, claramente matriarcales. Los Hasidim, arguyó (nuevamente como hubiera podido harcelo Buber), eran especialmente matriarcales en su caráter”.In – JAY, Martin. La imaginación dialéctica; tradução espanhola de Juan Carlos Curutchet, Madrid: TAURUS, 1974, p. 167, nota n.º 47.
[17] Cf. Erich FROMM. Ter ou Ser? tradução de Nathanael C. Caixeiro. 4ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1987, p.145-6.
[18] Cf. Idem, Quem é o Homem?, op. cit., p.144.
[19] Cf. Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade. op. cit., p. 31.
Ver também outras duas obras do mesmo autor Em Nome da Vida: um retrato através do diálogo. op. cit., p. 105. e (et alii) Zen-Budismo e Psicanálise. tradução de Octávio Alves Velho. São Paulo: Cultrix, sem data (original de 1960).
[20] Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, op. cit., p. 59.
[21] Cf., Idem, Ter ou Ser?, op. cit., p. 145-6
[22] Cf. Idem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, op. cit., p. 56.
[23] Cf. “The Mothers: A Study of the Origins of Sentiments and Institutions”, 1927; in: Martin JAY, op. cit., p.165.
[24] In: Idem, Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, op. cit., p.30.
[25] Cf. Idem, Ibidem. p. 30.
[26] “… se continua, em tese, fiel a Freud e Marx, privou tanto o freudismo como o marxismo de seu conteúdo polêmico. Sua psicanálise é o freudismo menos a teoria das pulsões, e seu marxismo é o materialismo histórico menos a luta de classes”. In: Sérgio P. ROUANET, Teoria Crítica e Psicanálise, 3ª Ed. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1989, p.70.
[27] Cf. Martin JAY, op. cit., p. 160.
[28] Cf. Sérgio P. ROUANET, op. cit., p.70.
Aproximadamente em 1930, na Alemanha, E. Fromm dirigiu uma pesquisa estatística para saber as possibilidades de Hitler ser derrotado pela população: 10% dos trabalhadores e funcionários seriam nazistas ardentes, 15% militantes antinazistas e 75% representariam uma mistura desses extremos. Erich FROMM, O Caráter Revolucionário, in: O Dogma de Cristo – e outros ensaios sobre religião, psicologia e cultura. tradução de Waltensir Dutra. 5ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1986. p.114-5.
[29] Cf. W. Reich, “Dialektischer Materialismus und Pyschoananalyse”, Unter dem Banner des Marxismus, III , 5; in: Erich FROMM, Crise da Psicanálise – ensaios sobre Freud, Marx e Psicologia Social. tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1971, p.138-9.
[30] Cf. Sérgio P. ROUANET, op. cit., p.51.
[31] Cf. Erich FROMM, Crise da Psicanálise – ensaios sobre Freud, Marx e Psicologia Social. tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1971, p.153-4.
[32] Esse conceito foi bem desenvolvido no apêndice de Erich FROMM, O Medo à Liberdade.(tradução de Octávio Alves Velho. 14ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1983), mantendo-se a idéia de liberdade sob forte determinação social. Entretanto, o “caráter social” foi apresentado pela primeira vez em Die psychoanalytische Charakterologie in ihrer Anwendung für die Soziologie, in Zeitschrift für Sozialforschung, I, Hirschefeld, Leipzig, 1931.
[33] In: Martin JAY, op. cit., p.172.
[34] Cf. Erich FROMM, “ Método e Função de uma Psicologia Social Analítica”, in: Crise da Psicanálise. op. cit., p.142.
[35] Cf. Sérgio P. ROUANET, op. cit., p.60 (Parêntese e esclarecimento meus).
[36] Cf. Erich FROMM, O Medo à Liberdade. op. cit., p.149s.
[37] Cf. Idem, Ibidem., p.223.
[38] Cf. Jonh H. SCHAAR, op. cit., p. 51.
[39] In: Erich FROMM, Análise do Homem, op. cit. p.16.
[40] Cf. Erich FROMM, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, op. cit., p. 88-9.
[41] Cf. Idem, Ibidem, p.36.
[42] Cf. Idem, Análise do Homem. op. cit., p.209.
[43] Cf. Idem, O Coração do Homem – seu gênio para o bem e para o mal. tradução de Octávio Alves Velho. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981, p.146.
[44] “O conhecimento científico não é absoluto, mas ’ótimo’; ele encerra o ótimo de verdade atingível em determinado período histórico…” in: Idem, Análise do Homem. op. cit., p.202.
Ver também in: Idem, O Espírito de Liberdade, op. cit., p.51.
[45] Cf. Idem, Entrevista ao Le Monde – o Indivíduo, op. cit., p. 41-2.
[46] Cf. Richard I. EVANS, op. cit., p.90.
[47] Cf. Erich FROMM, Análise do Homem, op. cit., p.10.
[48] Cf. Martin JAY, op. cit., p.173-4.
[49] Cf. Erich FROMM, A Arte de Amar. tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia LTDA, sem data., p. 60.
[50] Cf. Idem, Anatomia da Destrutividade Humana. tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: GUANABARA, 1987., p.579.